As relações entre críticos e artistas nem sempre são afáveis. Claude Debussy surtou: “A crítica não passa de variações sobre o tema: ‘Você tem talento e eu não, e isso não pode continuar assim.’” Talvez seja a vidraça reclamando do estilingue, mas há hermeneutas com a franqueza de um George Steiner: “Quem seria crítico, se pudesse ser autor?”
Com um pé nas duas canoas, gosto tanto de ler ficção quanto seus melhores intérpretes. Ficando só com estrangeiros, no meu panteão pontificam F. R. Leavis, Northrop Frye, Harold Bloom, Lionel Trilling, Louis Menand, Mark Greif, E. Auerbach, E. R. Curtius, Clive James e muitos outros. E agora sai no Brasil um clássico contemporâneo da crítica literária: O Sentido de um Fim, do britânico Frank Kermode, cuja edição original é de 1967, mas foi sucessivamente atualizada pelo autor.
Ironicamente, o título é o mesmo de um fabuloso romance de Julian Barnes, publicado muito depois e que ganhou o Booker Prize de 2011. Barnes comentou: “Bem, nunca tinha ouvido falar da obra de Kermode, e não há direitos autorais nos títulos. Kermode o possuiu durante quase meio século, e agora ele é meu.” Achado não é roubado.
Kermode já tinha outro livro importante editado no Brasil: Prazer e Mudança: a Estética do Cânone. Ok, tradição é um conceito-chave no cânone, até porque, como realçou Curtius, “cultura sem tradição é destino sem história”. Porém, e numa altura da litania sobre “descolonizar o currículo”, convém recuperar a lição de Kermode: uma tradição é uma acumulação de obras inspiradas, criadas por pessoas que não têm a tradição em suas mentes. Se eles têm alguma coisa em mente, é sua própria singularidade: as maneiras pelas quais não se encaixam, e não as maneiras como se encaixam.
O Sentido de um Fim é uma reflexão brilhante sobre o significado de final – na religião, no mito, na ciência, na filosofia e na ficção. O autor, que morreu em 2010, ocupou as mais prestigiosas cátedras (Harvard, Columbia, Cambridge) e foi feito cavaleiro pela rainha Elizabeth II. De erudição ímpar, preocupava-se em ser inteligível, exercendo o jornalismo literário nas revistas New Stateman e Spectator e sendo um dos fundadores da respeitadíssima London Review Of Books. Desprezava a especialização acadêmica, pois o especialista é alguém que sabe cada vez mais sobre cada vez menos. Realçava a proeminência do deleite na leitura, e se comprazia em citar um humorista: “O meu trabalho é dar prazer às pessoas. O dos críticos é tentar me impedir.”
O foco de O Sentido de um Fim é o tempo. Retilíneo ou cíclico, o tempo não pára, e também muda literariamente. Para os ficcionistas Vitorianos, havia uma pressão para que escrevessem um final feliz. Henry James definiu o último capítulo como “uma distribuição equitativa de recompensas, pensões, maridos, esposas, bebês, dinheiro, parágrafos supérfluos e comentários alegrinhos.” E aí veio Tchekhov e chutou o balde.
O objetivo de Kermode é aparentemente modesto: “Não se espera dos críticos, como se espera dos poetas, que nos ajudem a dar sentido à nossa vida: os críticos estão fadados apenas a tentar a façanha menor de dar sentido às maneiras como tentamos dar sentido à nossa vida”. Modéstia que contrasta com o Desconstrucionismo (hoje demolido), que tira a autoridade do autor. Como observou Susan Sontag (melhor crítica do que ficcionista), “a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte”.
Kermode não poupa ferramentas: “Uma época, notou Einstein, são os instrumentos de sua investigação. A física estoica, a tipologia bíblica, a teoria quântica são todas diferentes, mas todas se valem de ficções. É verdade que, em algumas situações, não conseguimos distinguir entre fato e nosso conhecimento do fato - as proposições podem até ser verdadeiras e falsas ao mesmo tempo. Mas se existe ou não um princípio que se aplica a ondas e partículas, amor e justiça, prazer e análise, consciente e inconsciente, um dos grandes encantos dos romances é que eles têm de acabar. Mas, a menos que sejamos muito ingênuos, não pedimos que avancem rumo a esse fim precisamente como nos foi dado acreditar. Na verdade, esperamos que só as obras mais triviais estejam em conformidade com os tipos preexistentes.” Por outras palavras, me engana que eu gosto.
A literatura joga com o tempo, e o ficcionista é um Deus não apenas onipotente como pré-Big Bang, quando o tempo não existia. Assim, o autor todo-poderoso conhece o passado, o presente e o futuro da sua narrativa – coisa que nem os personagens nem o leitor sabem nem podem adivinhar, mas apenas conjecturar, de preferência equivocadamente. Aliás, hoje os próprios cientistas consideram o tempo relativo, e não um absoluto. De qualquer forma, como notou o matemático Hermann Minkowski: “Ninguém jamais percebeu um lugar a não ser num tempo.”
Os gregos distinguiam três tipos de tempo. Cronos é o tempo cronológico, físico, que pode ser medido, com um princípio e um fim (que Kermode chama de “o tique-taque”, o intervalo entre o tique do nascimento e o taque da morte). Kairós é um tempo indeterminado e metafísico em que algo especial acontece, o momento crítico, que cria um “antes” e um “depois”. Já Aíôn era o tempo sagrado e eterno, cíclico e imensurável - um termo usado na geologia, cosmologia e astrologia para representar o período de um bilhão de anos, a escala de tempo geológica na história da Terra.
A ficção literária engasta o Kairós no Cronos: um momento marcante que brota na rotina repetitiva e muda para sempre a vida do protagonista. Por isso, ficção é fricção, e toda narrativa encena uma crise, uma turbulência, uma instabilidade – não necessariamente adversa, mas que não pode ser ignorada. Por isso, os autores têm uma história para contar. Como diz Tolstoi na abertura de Anna Karenina: “Todas as famílias felizes são iguais, mas toda família infeliz é infeliz do seu próprio jeito.” Se a teoria lida com abstrações generalizáveis, a literatura lida com individualidades irredutíveis.
Daí, conclui Kermode, “entre todas as outras ficções cambiantes, as literárias têm seu lugar. Descobrem, para nosso bem, algo sobre o mundo em mudança: organizam nossas complementaridades. Talvez façam tudo isso melhor que a história e a teologia, sobretudo porque temos consciência de que são falsas. A ficção do fim é como o infinito mais um e os números imaginários da matemática – sabemos que não existe, mas nos ajuda a dar sentido ao mundo e a nos mover dentro dele.”
O SENTIDO DE UM FIM
FRANK KERMODE
EDITORA TODAVIA
208 PÁGINAS R$ 79,90 ou R$ 49,90 (E-book)
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