“Esquerda anda, direita para”, eu avisei na escada rolante do metrô, e o dinossauro encastelado no degrau à frente virou para mim já com o punho erguido. Entendo: é que falar em esquerda e direita anda deixando todo mundo à beira de um ataque de pelanca. Dependendo do ângulo em que se esteja, chamar alguém de esquerdista ou direitista pode ser mais ofensivo que xingar a mãe. Deve ser por isso que, dos 20 escritores que procurei para perguntar, candidamente, “existe literatura de esquerda?”, só quatro se dignaram a me responder – os outros 16 vieram com desculpinhas tipo “Estou sem tempo para pensar nisso”, “Está tudo muito confuso”, “Me inclua fora dessa” etc. Notório isentão, O(A) Escritor(a) Brasileiro(a) mantém-se com um pé em cada ponta da escada rolante – e num passo em falso vai acabar se estabacando.
Por essas e outras faz falta ao Brasil um escritor como o argentino Damián Tabarovsky. Ficcionista, ensaísta, editor e tradutor, Tabarovsky publicou em 2004 o ensaio Literatura de Esquerda, atraindo, na mesma proporção, palmas entusiasmadas e narizes torcidos (crítica comum foi “Não se mistura literatura e política”). O texto forma um livro homônimo que contém outros ensaios provocativos – e só 13 anos depois é lançado no Brasil, em edição charmosa, pela valente Relicário. De cara, previno o leitor de que “literatura de esquerda” não significa submissão às velhuscas categorias nascidas na Revolução Francesa muito menos ao limitado Fla-Flu PT versus PSDB que tem separado os dois neurônios pátrios. O buraco é mais embaixo.
Tabarovsky divide os escritores entre os que ficam parados do lado direito e os que sobem ligeiros pelo lado esquerdo da escada rolante. Sua preocupação não é a estática, é a estética: “A literatura de esquerda suspeita de toda convenção, inclusive as próprias (...) Não busca inaugurar um novo paradigma, mas pôr em xeque a própria ideia de paradigma, a própria ideia de ordem literária.” O ensaísta usa “esquerda” como sinônimo de transgressão, de ousadia, de tesão suicida pela vanguarda, de desfaçatez tanto para com o mercado quanto para a academia; de negativismo, de corrosão; de um amor desmesurado pela inventividade e pela linguagem. “A literatura de esquerda é escrita pelo escritor sem público, pelo escritor que escreve para ninguém, em nome de ninguém, sem outra rede além do desejo louco de novidade.”
O texto de Tabarovsky tem a paixão pela frase brilhante de um Mencken e pela citação bem-sacada de um Benjamin (autores de polos ideológicos opostos). Ele exalta quem “escolhe a própria linguagem para perfurá-la, para buscar esse lado de fora – o lado de fora da linguagem – que nunca chega, que sempre se posterga, se desagrega (a literatura como forma de digressão), esse fora, ou talvez esse dentro inalcançável: a metáfora do mergulho (a invenção de uma língua dentro da língua); não mais o mergulho como busca da palavra justa, bela, precisa (o coral iluminado submerso), mas como o momento em que a caça submarina se extravia e se converte em lataria, ácido, vidro moído, coral de vidro moído (a exploração de um navio afundado)”.
Em pouco mais de cem páginas, o argentino passeia entre 143 autores diversos, movido a parênteses dentro de parênteses, frases que se alongam até o paradoxo ou até redundarem em epifanias como “a literatura é uma tumba sem sossego”. O bicho é bom de briga. Chama para o octógono de Borges a Aira, passando por Cortázar, Pizarnik, Piglia e Saer: não sobra monstro sobre monstro sagrado. Se entrou para o cânone, Tabarovsky já calça as luvas – ele dá a preferência a lutadores gauches como Lamborghini e Copi. Exibe igual desprezo tanto por autores performáticos que valorizam o estrelato pop quanto soturnos nefelibatas que cabalam os votos da glória universitária. Irrita-o a percepção de que o pragmatismo, a mistificação e o fetiche de mercadoria na busca por uma “literatura café com leite” (“esses romances ‘bem escritos’, ‘inteligentes’, com insípidas gotas de experimentação, sem que por causa disso deixem de ser ‘emocionantes’, ‘arrebatadores’ e ‘profundos’, esses romances medianos como os de Kundera, Tabucchi, Saramago, Auster ou os novos novelões americanos como os de Franzen (...) são romances belos, agradáveis: não incomodam ninguém”) façam com que o escritor se contente em ser um mero “publicador de livros”. Tabarovsky propõe o risco e o abismo.
“A graça da literatura está em derrubar: estava surfando quando uma onda me engoliu.” Para cortar o complexo de vira-latas, é a coisa mais parecida com o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade ou os Problemas Inculturais Brasileiros de Osman Lins que os hermanos já entregaram. Num momento em que a acomodação literária quase não ecoa a guerra polarizada das redes e das ruas do Brasil, Literatura de Esquerda é uma bem-vinda bofetada na cara de todo escritor: um golpe de ar, desses que nos fazem cair do conforto da escada rolante.
A opinião dos autores brasileiros. Existe literatura de esquerda? E de direita? Quatro autores elegem três livros de cada espectro político:
Angélica Freitas (Um Útero É do Tamanho de Um Punho): “Me ocorreram três que consideraria ‘de esquerda’, pelo que têm de preocupação com o outro: Habitante Irreal, do Paulo Scott, Treme Ainda, do Fábio Weintraub, e Coquetel Motolove, da Luiza Romão. Deve haver mais. Mas de direita por enquanto não me ocorre nenhum.”
Joca Reiners Terron (Noite Dentro da Noite): “Toda a literatura brasileira é de esquerda, inclusive a de direita. Escrevemos em português, língua praticamente só falada aqui, país onde ninguém lê. Por esse descompromisso – com o mercado, que não a vende; com a academia, que não a interpreta –, a literatura brasileira está vinculada com a vanguarda. Nossos grandes referentes são vanguarda: Brás Cubas, Grande Sertão: Veredas. Comparada com Silvina Ocampo, Clarice é pura vanguarda. Diferentemente da Argentina, que desde os anos 1940 produziu ficção comercial, só agora começamos essa experiência: nossas chaves de leitura simbólica estão em campos contrários. Somos experimentais desde Pero Vaz de Caminha, enquanto eles produziram westerns desde o Martín Fierro.”
Noemi Jaffe (Írizs: As Orquídeas): “Penso que ‘literatura de esquerda’ é a literatura que perturba os poderes estabelecidos: literários, políticos, sociais, culturais. No Brasil, talvez a coisa venha se agravando porque, como os poderes instituídos atuais são ilegítimos, creio que, se houver alguma literatura que os confirme, será não só de direita, mas de extrema direita, ou até burra. Literatura de direita, portanto, seria uma literatura burocrática, fática, enfim, um livrinho do Temer. Três livros de esquerda: Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, da Clarice Lispector; Os Ratos, do Dyonélio Machado; Formas do Nada, do Paulo Henriques Britto. De direita: putz, complicado. Sem citar Sarney, Temer, quem seriam? Algum do Paulo Coelho. Literatura só para efeito embelezador, essas moças que vendem que nem água, sabe? Zibia Gasparetto...”
Marcelino Freire (Nossos Ossos): “Literatura de esquerda é de resistência, está sendo feita pelos saraus da periferia de São Paulo; a literatura das pequenas editoras; os livros lançados por selos independentes; o livro livre, solto pelos botecos, esquinas, feiras alternativas. De direita? Qualquer livro de autoajuda; qualquer um que pregue a alienação; as biografias chapas-brancas; os parágrafos escritos por padres festivos; os poemas reunidos do presidente golpista; Os Marimbondos de Fogo, do Sarney. De esquerda, citaria o Meio Intelectual, Meio de Esquerda, embora o autor, Antônio Prata, diga que é só metade de esquerda (rararará!); qualquer um do João Antônio; tudo o que estiver à margem. De direita: perdão, dá preguiça listar. Rarararará! Coloca aí os do Lobão. Credo!”
*Ronaldo Bressane é de esquerda, mas escreve com a mão direita. É autor de 'Mnemonáquina' (Romance, ed. Demônio Negro) e 'Metafísica Prática' (poesia, Oito e Meio)
Literatura de Esquerda Autor: Damián TabarovskyTradução: Ciro Lubliner e Tiago CferEditora: Relicário 112 páginas R$ 35
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