BOSTON - Seus pais eram atores, seu avô fazia sapatos; ele não parecia ter nascido para grandes coisas. Giacomo Casanova, no entanto, tinha recursos que ofuscavam a falta de dinheiro e título: ousadia, sagacidade, um dom para idiomas e charme suficiente para deslizar para um assento na mesa de jantar de um cardeal ou para a cama de uma condessa. Em sua Veneza, na resplandecente Paris, e depois pelo continente, ele se reinventou ao interpretar os papéis de autor, cortesão, empresário, espião.
O voraz veneziano paira como um espírito dominante sobre a arte do século 18 em Europa de Casanova, uma exposição animada e muitas vezes engenhosa em Boston. Atualmente, seu nome é um mero sinônimo de proeza sexual, ou pior – Casanova foi para a cama com sua própria filha, e vários de seus romances ficaram bem aquém do padrão contemporâneo de consentimento afirmativo.
Mas ele também era, como mostra a exposição, uma espécie de herói da classe trabalhadora, cujos gostos extravagantes e façanhas picarescas só se tornaram possíveis quando uma velha ordem social começou a mudar. Os meados do século 18 eram uma época de cultivo e refinamento, mas também um desafio para trapaceiros, interesseiros e aproveitadores. Casanova, o mais erudito dos golpistas, era o arquétipo da época.
O museu de Boston é a terceira e última parada desta exposição, e sua corrida de um ano que coincidiu com uma mudança essencial na forma como as instituições culturais enquadram as desigualdades de gênero, aquelas de hoje e de ontem. (A mostra foi renomeada para esta última parada em sua turnê; no Museu de Arte Kimbell em Fort Worth e na Legião de Honra em San Francisco, passou pelo mais sexy Casanova: A Sedução da Europa.) No entanto, a libertinagem, ou a celebração dos prazeres da carne, é apenas um dos interesses dessa exposição, e o amante jovem não é realmente seu tema.
A autobiografia de Casanova, A História da Minha Vida, fornece uma visão detalhada das maneiras sociais do século 18 ao longo de suas 3.700 páginas manuscritas: como os europeus ricos participavam de banquetes e apostavam, como escolhiam suas roupas ou penteavam seus cabelos, como mantinham um verniz de devoção e reverência enquanto seduziam um ao outro. Esses insights são a moldura invisível em torno das mais de 250 pinturas, móveis, roupas e livros, que os curadores reuniram para evocar uma cena social pan-europeia na qual a vida assumia os aspectos do teatro. Imagens de pastores e deuses vigorosos definem o tom sexual da “Europa de Casanova”, mas as artes decorativas são ainda mais importantes: roupas de veludo e chapéus com enfeites de castor, teclados e mesas de pôquer, estátuas de porcelana, candelabros dourados e sopeiras de prata.
Entramos na Veneza de Casanova através de uma galeria inicial de meia dúzia de paisagens, ou pinturas da cidade, de Canaletto: mulheres com véus negros escondem-se sob os arcos do Palazzo Ducale para trocar intrigas e barqueiros percorrem a lagoa entre San Marco e San Giorgio Maggiore. Casanova nasceu lá em 1725 e, durante séculos, um pequeno número de famílias desfrutou de todo o poder político e de todo o bom vinho.
Em meados do século 18, porém, esses aristocratas e mercadores viviam vidas públicas, chamando a atenção em salões e cafés, exibindo-se na ópera e na igreja. Agora, um jovem da classe errada poderia se misturar com essa multidão – se interpretasse bem seu papel.
Primeiro eram necessárias roupas, e essa mostra contém conjuntos suntuosos para ambos os sexos; um homem poderia ter preferido conjunto de seda e veludo em três peças, aqui em um manequim, com o paletó adornado em fios de prata e lantejoulas cintilantes.
Uma vez dentro do palazzo, você teria que conversar sobre os belos objetos que seu anfitrião colecionava, seus óculos entalhados, seus castiçais de ouro ou estatuetas obscenas de amantes. Você tocaria música com a dona da casa, em um cravo cuja tampa era decorada com cenas mitológicas de romance. Você faria intrigas sobre amor e dinheiro e mudaria de assunto quando lhe perguntassem sobre seu passado.
Casanova conseguiu sua entrada neste mundo brilhante depois de salvar a vida de um senador agradecido. Ele também tinha outra habilidade – uma mais reprovável, mas não menos bem-vinda na alta sociedade. A busca do prazer assumira importância filosófica e política em meados do século 18, e os europeus estavam caindo no leito em todos os sentidos, quanto mais operístico melhor.
Uma dúzia de desenhos pornográficos do artista francês Claude-Louis Desrais retratam aristocratas desorientados em acrobáticos ménages à trois (ou mais que trois), e três deles apresentam cenas de sadomasoquismo, a prática sexual por excelência do século 18. Em uma das cenas, uma dama leva um chicote a um homem muito satisfeito, suspenso por uma polia.
Libertinagem era, desnecessário acrescentar, o privilégio de um homem. No entanto, as mulheres conheciam as regras do jogo, e tanto para homens quanto para mulheres, o sexo se tornou outro tipo de teatro, no qual o que você dizia nunca expressava realmente o que queria dizer.
Em uma pintura voluptuosa de Jean-Honoré Fragonard, à qual ele deu o irônico título A Resistência Inútil e completou em 1773, uma donzela envolta em sedas puxa a peruca de um sedutor atrevido, que levantou sua saia para revelar suas coxas. Agora é fácil interpretar mal essa imagem como uma cena de agressão sexual, mas os sorrisos nos rostos de ambos os amantes revelam: ela está fingindo que não está disposta, assim como ele está fingindo seu avanço. O sexo também era um baile de máscaras, que permitia que essa mulher (de classe alta) aproveitasse seus desejos e ainda se apegasse à sua virtude.
Até as mulheres dos conventos podiam ter uma vida sexual vibrante, se fizessem a coisa certa. Na Europa de Casanova você encontrará um quadro de manequins ricamente vestidos em um parlatório, a sala de visitas de um convento onde os leigos poderiam falar com as moças cujos pais ricos haviam julgado as ordens sagradas mais baratas do que os dotes.
Foi em um parlatório veneziano como este que Casanova teria encontrado uma de suas mais notórias amantes, uma freira a quem deu o pseudônimo M.M., que tinha numerosos outros amantes, homens e mulheres. Ela não era a única noiva de Cristo a romper seus votos; uma perversa pintura de dois lados mostra uma freira jovem ajoelhada em oração na frente e, na parte de trás, abrindo seu hábito para revelar seu traseiro nu.
Esse é o século 18 europeu para você: a era do Iluminismo, era do adultério. Os dois eram especialmente combinados em Paris, onde a regência do duque de Orleans, promíscuo e beberrão, introduzira uma nova tolerância social pelo sexo, e onde Casanova chegou em 1750. Gravuras mostram bailes mascarados, apresentações teatrais e noites de jogos de azar evocando os prazeres da noite parisiense, e um outro retrato, de uma mulher casada em sua toilette arrumando um encontro com um amante mais jovem, traz um giro provocativo sobre peças de prata e objetos decorativos que frequentadores de museus costumam ignorar.
Casanova retornou a Paris em 1757 depois de escapar de uma prisão veneziana, onde foi preso por heresia, e que os curadores dessa exposição evocam através das impressões quase contemporâneas de prisões sombrias pintadas por Piranesi. A notoriedade de Casanova lhe rendeu um lugar nos apartamentos mais ricos de Versalhes; logo estava dirigindo a loteria de Paris e espionando para o governo. Havia mais esquemas, dinheiro ganho e perdido, tempo na estrada e em fuga.
Por fim, ele envelheceu sem amor e foi para a Boêmia, vivendo em tranquilidade como bibliotecário e escrevendo a história de sua vida, em francês. O quão honesto ele era, quantas foram as muitas mulheres com as quais ele poderia ter dito que dormiu sempre será desconhecido – e a ansiosa decisão do Museu de Belas Artes de mudar o título da exposição resume uma verdadeira incerteza, nos museus de hoje, sobre a melhor forma de abordar as desigualdades sexuais do passado.
O sexo em si não é o problema. O problema, então e agora, é o poder – e uma visão mais justa do poder também nasceu nos salões e boudoirs do Iluminismo na Europa.
Na última galeria aqui nós nos deparamos com um retrato de 1766, do pintor escocês Allan Ramsay, de um homem carrancudo com intensos olhos castanhos. Quem é esse homem de rosto severo nesta casa de prazeres? Ele é Jean-Jacques Rousseau, cujas Confissões, com suas revelações de suas próprias desventuras amorosas, inspiraram a biografia de Casanova – e cujos outros escritos ajudaram a fomentar revoluções na América, na França e no Haiti. Rousseau teve uma visão obscura do luxo e desprezou a alta sociedade na qual Casanova se revelou. Mas a liberdade humana, mais do que qualquer luxúria carnal, era o desejo mais destemperado do século 18. / Tradução de Claudia Bozzo
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