A vida urbana tirou de muitas pessoas a capacidade de olhar, de contemplar, mas acima de tudo de andar pelas ruas, se apropriar das cidades e de seus entornos. Olhar para o outro, olhar ao nosso redor, perceber sutilezas, aguçar a visão. Ver requer certa intencionalidade, uma curiosidade incansável, um querer encontrar: “nada acontece quando você está em casa”, costuma afirmar o fotógrafo nascido na França, radicado nos Estados Unidos, Elliot Erwitt, conhecido por suas imagens inusitadas, e por estar sempre acompanhado de sua câmera fotográfica. A qualquer momento existe a possibilidade de se deparar com uma cena que vale a pena ser fotografada, vale a pena ser compartilhada.
Erwitt criou um acervo imagético de largo espectro e que reúne imagens de praia, pessoas nos museus, de coleções esquisitas, retratos de crianças e de personalidades. Famosos são seus retratos da Marylin Monroe, John Kennedy e Che Guevara, só para citar alguns exemplos. O que o distingue é a ironia fina que imprime em suas fotografias. Não é o humor e o riso solto, mas um jeito sútil de dizer uma coisa em lugar de outra. Uma imagem que se aparentemente é naif ou ingênua, traz também toda uma crítica social ao homem moderno e contemporâneo. Assim como os antigos filósofos, Erwiit percebeu que a ironia, o humor, são muitas vezes a melhor maneira de fazer refletir. Se auto definindo como um fotógrafo humanista ele acredita que possa conseguir compartilhar seu prazer e sua alegria ao ver uma foto.
Parte de seu trabalho pode ser visto agora na exposição Elliott Erwitt – Vida de Cão que abre no Centro Cultural da Fiesp, no dia 4 de julho. Talvez seja este seu trabalho mais conhecido, o das fotos de cachorros. Afinal, a primeira foto relacionada a este assunto foi realizada em 1946, e desde então eles continuam aparecendo em suas fotografias e permeando seu imaginário. Cachorros sempre em relação com o ser humano e observados de modo perspicaz. Como costuma dizer o próprio fotógrafo: “ não importa o que você fotografa, mas como você fotografa”. É como você reage ao que você vê, esperançosamente sem preconceitos. Você pode achar imagens em todo lugar. Trate-se simplesmente de notar coisas e organizá-las. Você só precisa se importar com o que está à sua volta e se preocupar com a humanidade e a comédia humana”, relata no site da Magnum. Desta maneira podemos entender que o cão personagem das imagens está ali e interessa mais como fotografia do que como o próprio cão, que não posa, não sabe o que é uma imagem, mas se torna protagonista da criação de um significado que nos faz sorrir. “Adoro cães. Eles estão em todos os lugares e geralmente não tem objeção em serem fotografados”, costuma afirmar em suas entrevistas. Como toda imagem ela é construída e plena de códigos e o que nos encanta é muito mais o fato de estarmos vendo uma fotografia do que a cena em si. A evidência fotográfica é que se torna portadora do discurso imagético. A imagem fabuladora de uma realidade inexistente, criadora de uma narrativa a espera de uma decifração, de uma descoberta. A imagem que por si só não afirma nem nega nada, mas que se coloca de forma desafiadora para ser compreendida. Não é a fotografia que nos aponta a cena e nos faz rir, mas a compreensão da ironia que ela contém.
Assim, lembrando o sociólogo Pierre Bordieu (1930-2002), a fotografia cumpre funções sociais, e se ela é vista como irônica ou humorística é porque nós lhe atribuímos estas características para responder a questões específicas que nos interessam. Um jeito de lidar com o que estamos vendo a nossa frente. As imagens como modeladoras de nosso pensamento e por meio da estética, caso específico deste trabalho, imagens em preto e branco, formando nossa visão do mundo. Inusitado encontro como o lúdico como uma maneira de aliviar tensões. Uma experiência representativa que crítica as questões sociais estabelecidas.
Segundo João Kulcsár, curador da mostra: “seu olhar captura o conjunto de afinidades que temos com o melhor amigo do homem: é afetuoso e engraçado ao mesmo tempo que é estético e crítico na escolha do clique”.
Mas as imagens de Elliott Erwitt são bem mais do que isso. Tem forte influência em seus primórdios como fotógrafo, mais precisamente no fotojornalismo, na fotografia de rua, no andar pela cidade em busca de imagens e na construção de narrativas, ou quem sabe pequenos contos. Nascido em 1928 em Paris, de família russa, morou inicialmente na Italia, e se transferiu com a família para os Estados Unidos no começo da segunda guerra mundial. Estuda fotografia e cinema e em 1950 trabalha como fotógrafo para o exército americano. Inicia sua carreira como fotojornalista fotografando para revista como a Life e, em 1953, junta-se ao time da agência Magnum graças a sua amizade com Robert Capa, e, em 1966, foi eleito presidente da cooperativa. Mas ao contrário de Capa, seu olhar não se voltou para os conflitos, mas para as ruas, tão caras a outro fundador da Magnum, o francês Henry Cartier-Bresson. Distanciou-se dele também, esteticamente falando, fugindo da rigidez da composição e deixando suas imagens mais soltas, aparentemente mais livre de amarras.
Além de fotógrafo também trabalhou com cinema, realizando inúmeros documentários, especialmente a partir dos aos 1970. Filiar-se a Magnum lhe trouxe a possibilidade de viajar pelo mundo enriquecendo seu acervo de imagens insólitas e, consequentemente, divulgar seu trabalho. Imagens colhidas como lembranças dos lugares por onde passou. Uma coleção de encontros. Como se Elliot Erwitt se visse como um colecionador de momentos de cenas e cenários: “ suas imagens são permeadas de elementos autobiográficos e representam o que ele é diariamente, uma pessoa irônica, bem-humorada que atende à condição humana com um olhar compassivo”, escreve no catálogo da mostra o curador.
Suas fotografias chamam a atenção por sua estética. A estética como formadora de um discurso que pode ser irônico, também pode ser ácido, pode também ser usado como crítica social.
Ele incorpora o acaso, registra aquele átimo que parece se concretizar à sua frente quase que sem querer. Mas ao olharmos com mais vagar notamos que se trata de uma construção muito bem pensada, que a espera é necessária eu a imagem é antecipada em sua imaginação, que seu olhar procura antecede, prevê. O cachorro que se mimetiza no humano, que o acompanha, que segue seus interesses. Não são fotos posadas ou manipuladas, são esperas, construções fotográficas, brincadeiras com ângulos, e recortes, o domínio do discurso imagético, que convida o espectador a participar da surpresa, de um olhar que nos desafia e um primeiro momento, de certa maneira até nos desconcerta. Seguindo esta linha de raciocínio, devemos lembrar como aponta o crítico de arte e fotografia François Soulages, “a fotografia não é a restituição do objeto-mundo, mas a produção de imagens que interpretam alguns fenômenos visíveis e fotografáveis, de uma mundo particular existente numa espaço e uma história de dados.”
A ação canina resultado da ação humana. Ao colocar os cães em suas fotos ele está falando do humano: “ Elliot usa o humor para introduzir sutilmente sua análise social”, escreve no catálogo o curador.
Com seu olhar sútil e a ironia fina ele nos leva a pensar sobre nossos próprios comportamentos. Se alguns críticos de arte ou fotografia inserem suas imagens dentro de uma estética do banal, podemos, ao contrário, afirmar que é dentro da banalidade ou do cotidiano bem pensado e construído que podemos fazer uma crítica assertiva e bem humorada dos tempos que vivemos e que continuamos vivendo.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.