Fábulas, seguidas do Romance de Esopo é, como afirmou Jacyntho Lins Brandão no texto de orelha, um livro que contém, na realidade, dois: numa primeira parte, traz uma coletânea bilíngue de 75 fábulas de Esopo, traduzidas por André Malta; em sua segunda parte, apresenta aos leitores o Romance de Esopo, traduzido pela primeira vez para o português por Adriane da Silva Duarte. A respeito desses “dois livros” agrupados num só, Adriane Duarte lembra que, a partir do período bizantino e durante muito tempo, fábula e romance eram editados num único volume, “costume retomado” então nesta edição da Editora 34 publicada em 2017 no Brasil.
A edição de Fábulas, seguidas do Romance de Esopo, é muito cuidadosa. As fábulas e o romance são precedidos de um longo prefácio, assinado pelos tradutores, em que eles contextualizam os seus respectivos textos, esclarecem pontos específicos de suas traduções e oferecem ao leitor sugestões bibliográficas. Além disso, há inúmeras notas explicativas incluídas pelos tradutores ao longo dos textos.
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Lê-se na apresentação de André Malta que a primeira compilação de fábulas de Esopo foi feita no ano 300 a.C. por Demétrio de Falero. Depois dessa compilação, houve uma série de manuscritos editados ao longo dos anos que, somados, totalizam de 350 a 400 histórias atribuídas ao fabulista grego. Muitas delas, contudo, são diferentes versões de uma mesma narrativa. Na antologia de André Malta, a intenção, como ele mesmo afirma, foi evitar repetições de uma mesma ideia e situação em diferentes fábulas, sem deixar de lado, entretanto, as narrativas mais conhecidas dos leitores modernos, como O Lobo e o Cordeiro, A Cigarra e as Formigas e A Raposa e o Cacho de Uva.
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A respeito das fábulas de Esopo, André lembra que elas não têm nenhuma ligação com o que hoje chamamos de literatura infantil. Além disso, destaca que, ao contrário do que se pode pensar, existem fábulas com e sem animais. De fato, em muitas delas não são animais que atuam como personagens centrais, mas homens, mulheres e figuras mitológicas. Numa das fábulas dessa nova antologia, Esopo no Estaleiro, o próprio fabulista é protagonista e, tal como se lê na sua “biografia” (Romance de Esopo), um grande conselheiro.
Mas quem foi Esopo, afinal? Trata-se de uma figura lendária ou, talvez, histórica que teria vivido na Grécia entre os séculos 7 e 6 a.C. Nos séculos subsequentes, ele já era extremamente conhecido e citado por gregos como Heródoto, Aristófanes, Platão e Aristóteles. Segundo André Malta, Esopo seria “uma espécie de ‘pai da fábula’, a quem se atribui toda e qualquer minitrama de viés moralizante, disseminada oralmente, geralmente em prosa.”
Romance de Esopo, ainda que uma biografia ficcional de autoria incerta, apresenta ao leitor de forma muito bem-humorada essa figura mítica, oriunda das “classes populares e representante de seus valores, contrapostos aos da elite aristocrática e intelectual. Tudo isso faz dele um herói protopicaresco, de certa maneira”, como afirma Adriane Duarte no seu texto introdutório.
Na sua biografia, Esopo é assim descrito: “repugnante ao olhar, ele era asqueroso: pançudo, cabeçudo, de nariz achatado, corcunda, negro, baixote, de braços curtos, manco, vesgo, beiçudo – uma aberração manifesta.” Era também mudo, mas, depois de receber a fala das musas e de ter sido agraciado com “a inventividade da palavra justa”, transforma-se em conselheiro do filósofo Xanto, do rei Creso e do faraó egípcio Nectanebo.
Esopo é um conselheiro bastante insolente, ressaltando como são desarrazoadas as divagações dessas figuras consideradas importantes. Certa vez, ao se dirigir a Banhos, foi indagado pelo chefe da guarda, que o conhecia: “‘Esopo, aonde você vai?’. Esopo respondeu: ‘Não sei’. O chefe da guarda disse: ‘Eu pergunto aonde você vai e a resposta é ‘não sei’?’. Esopo disse: ‘Não sei, juro pelas Musas’. O chefe da guarda ordenou que o levassem preso. Esopo disse: ‘Senhor, você está vendo que eu respondi corretamente, pois não sabia que seria levado para a prisão!’ O chefe da guarda, admirado, soltou-o.”
O Romance de Esopo tem sua origem na tradição oral e a versão ora apresentada é fruto de uma colagem de recensões feitas ao longo dos anos e de um vultoso e sério estudo de Adriane Duarte. Se para alguns o termo romance, adotado pela tradutora, possa soar estranho, ela explica que a Antiguidade, de fato, carecia dele; contudo “o termo anastrophé pode sugeri-lo, na medida em que implica a ideia de guinada, aproximando-se nesse sentido de peripécia” e retendo a ideia de um “conjunto de atos que perfazem a trajetória de um personagem”.
*Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de 'Ascensão: Contos Dramáticos' (Cultura e Barbárie)