Filósofo italiano pensa a vida do ponto de vista das plantas

Emanuele Coccia propõe um cérebro planetário em seu livro 'A Vida das Plantas'

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Por Sérgio Medeiros
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Tomar a floresta como modelo é uma tendência das artes e do pensamento contemporâneo. Pode-se citar, entre outros, os livros How Forests Think: Toward an Anthropology Beyond the Human (Como Pensam as Florestas: Por uma Antropologia para Além do Ser Humano), de Eduardo Kohn, e Penser comme un arbre (Pense como uma Árvore), de Jacques Tassin. No Brasil, acaba de ser lançado A Vida das Plantas (Cultura e Barbárie), do filósofo italiano Emanuele Coccia, numa competente tradução de Fernando Scheide. Décadas atrás o modelo da moda era o animal, e tivemos no Brasil o lançamento de A Vida dos Animais, do prêmio Nobel J. M. Coetzee. Agora é a vez da planta, “imagem do mundo em sua totalidade”.

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O filósofo italianoaEmmanuele Coccia, autor de 'A Vida das Plantas' Foto: Hugo Amaral/Observador

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Coccia escreveu o seu ensaio sobre as plantas em francês. O que mais impressiona no livro é, sem dúvida, a vasta erudição do autor, que maneja com desenvoltura fontes clássicas e modernas no campo da botânica, biologia, teologia etc. Os artistas, porém, são ignorados. E os autores latino-americanos tampouco são lembrados; não encontrei uma única referência a um pensador indígena, por exemplo. Vê-se que é uma abordagem eurocêntrica da planta, embora isso não tire a relevância da obra, mas explica talvez por que uma das teses do autor é o heliocentrismo, que afirma que a Terra é inseparável do Sol. Esse Sol parece não ter sido anunciado por Jurupari, na Floresta Amazônica, mas por Copérnico, na Europa. Então Coccia afirma, pensando o humano sob o modelo da planta: “Nosso corpo não passa do arquivo do que o Sol oferece à Terra.”

É muito difícil resumir as ideias do autor, mas as suas conclusões são simples e claras, e às vezes podem até soar como platitudes, quando retiradas do seu contexto. Mesmo correndo o risco de ser injusto com Coccia, que escreveu um ensaio muito ambicioso que refuta, entre outros, Gilles Deleuze e, sem citá-lo, também Eduardo Viveiros de Castro, citarei uma máxima presente em A Vida das Plantas: “O que há é céu, por toda parte, e a Terra é uma porção dele, um estado de agregação parcial.” O autor propõe destruir a noção tradicional de chão para “superar o horizonte ordinário da ecologia”. Coccia mostra, assim, que, no mundo, “tudo está misturado com tudo, nada está ontologicamente separado do resto”. 

Não saberia dizer qual é o capítulo culminante do livro, porém o mais palatável deles, porque mais sucinto e menos repetitivo, é o último, dedicado à flor e, por extensão, à nova forma de razão pós-humana, um dos temas palpitantes da contemporaneidade. Após definir a flor não como um órgão, mas como “um agregado de diferentes órgãos modificados para tornar possível a reprodução”, Coccia propõe que não se pode reduzir o sexo vegetal “a uma simples estratégia de duplicação de si”. E conclui que a flor mostra um mecanismo inverso: “o da desapropriação de si, do devir estranho a si mesmo”. Para provar isso, cita as flores hermafroditas, que desenvolvem “um sistema de autoimunização para evitar a autofertilização, uma defesa contra si mesmas que lhes permite melhor se abrir ao mundo”.

Ao fazer o elogio da flor e discutir o sexo vegetal, Coccia diz que os genes são os cérebros e o espírito da matéria, e que o cérebro não é (mais) um órgão humano, “não é sequer um órgão, mas um segmento da matéria que detém saber e conhecimento”. Como se percebe, o jovem filósofo italiano se empenha em dilatar as noções de saber e de conhecimento. “Não fazer do intelecto um órgão separado”, é a sua proposta que vai de encontro ao aristotelismo, “e sim fazê-lo coincidir com a matéria”. Da flor passamos para todo o universo, que existe e vive enquanto espírito. É aí que entendemos por que a planta é um símbolo do novo e problemático panteísmo contemporâneo: “A vida vegetal nunca é um fato puramente biológico; ela é o lugar da indiferença entre o biológico e o cultural, o material e o cultural, o logos e a extensão.”

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A razão cósmica e natural é a semente. Numa formulação poética (embora o texto do ardoroso Coccia não seja propriamente literário nessas páginas que procuram redefinir o pensamento), o seu símbolo é a razão-flor, “uma força de multiplicação do mundo”. Com uma ênfase que poderia lembrar Eureka, de Edgar Alan Poe, a razão-flor é anunciada, na conclusão de A Vida das Plantas, como aquilo que multiplica e diferencia. “A flor é a forma paradigmática da racionalidade”, são as palavras derradeiras de Coccia, que ainda explica: “pensar é sempre se implicar na esfera das aparências, não para expressar sua interioridade oculta, nem para falar, dizer alguma coisa, mas para pôr em comunicação seres diferentes.”

A noção de panteísmo cósmico, que está por trás desse novo materialismo pós-ecológico, concebe um único cérebro planetário. Mas o que sucederia se essa visão de mundo se revelasse ainda mais “arcaica”, ou seja, animista, gerando, na contemporaneidade, uma multiplicação de totalidades simultâneas, visíveis e invisíveis? Essa é, a meu ver, uma questão mais indígena do que europeia.

*Sérgio Medeiros é poeta, ensaísta e professor de literatura na UFSC. Publicou, entre outros livros de poesia, 'O Sexo Vegetal' (2009) e 'Trio Pagão' (2018), ambos pela editora Iluminuras 

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