Em 2018, tivemos o anúncio de Cacá Diegues como representante do Brasil no Oscar, perdemos Nelson Pereira dos Santos, Roberto Farias e Alfredo Sternheim, celebramos os 50 anos de O Bandido da Luz Vermelha e Glauber Rocha, há 50 anos também, iniciava a saga de O Dragão da Maldade/Câncer, achaques ao AI-5.
Ao largo dessas notas históricas, encontramos um cineasta paulista, nascido em 1929, que estudou Filosofia, foi assistente nos estúdios da Vera Cruz, crítico de cinema – introduziu Ingmar Bergman ao espectador brasileiro pelas páginas do Estado e iniciou a carreira de diretor na TV Record entre 1954 e 1956. À curta memória cinematográfica brasileira, que aposenta compulsoriamente figuras do calibre de José Mojica Marins, Clery Cunha e Virgílio Roveda, convém relembrar Walter Hugo Khouri, morto em 2003. O suficiente para que o jovem estudante de Cinema já não saiba de quem se trata.
Khouri é um caso peculiar na cinematografia paulista – e ultrapassou os limites bairristas. Seus primeiros filmes, aventuras e dramas históricos buscavam esteio na estética de estúdio, aos moldes das produções para exportação como havia em seu tempo. Com Estranho Encontro (1958), deu pistas do que perseguia. Em A Ilha (1962) encontrou o tema predileto, revirando a volúvel sanha vaidosa da burguesia. Enquanto o Cinema Novo iniciava seu momento de ouro na vanguarda estética em prol das minorias, deu lume a Noite Vazia, de 1964, kammerspiel que desvelava um inventor no sentido mais poundiano do termo. Colocou numa garçonnière quatro monstros morais, cada um com sua ética e obsessões, num jogo interminável de insultos, disputas de pequenos poderes e contumazes frustrações.
A partir de então, afinou seu foco. Passou a explorar com lupa a mazela mental daquele que não tem com que se preocupar senão com o hedonismo, com a busca por algo que certamente não há, de fato. Um exame psíquico de personagens alijados das desigualdades e de um cotidiano predador, o que lhe valeu a pecha de alienado, intelectualizado e cineasta pequeno-burguês. Khouri, refutou. Dizia que nunca se furtou a olhar para os problemas do país, mas que seu cinema se voltava para o problema do indivíduo, antes de tudo, cerne da desgraça coletiva. Não estava alheio aos embates sociais em tempos de ditadura, portanto. Em As Amorosas (1968), Marcelo, seu personagem recorrente, sua versão do alter ego de Truffaut, Antoine Doinel, é um jovem que ousa lançar um olhar crítico sobre a esquerda, vertente a que pertencem seus colegas universitários. Por isso, é rechaçado e expurgado do grupo. O filme afinava-se tanto com as revoluções culturais de seu tempo, que se tornou o trabalho mais experimental do diretor, com montagem ágil, abordagem crítica dos meios de comunicação, a já recorrente trilha atonal composta por seu primo, Rogério Duprat, e canções executadas pelos Mutantes.
Depois dessa rápida e certeira passagem pela contracultura, Khouri retornou ao hermetismo das ideias e aos vícios da carne em filmes que focaram com apuro o nu feminino, os instintos primitivos masculinos e o vácuo existencial de ambos. As Deusas (1972), O Último Êxtase (1973) e O Desejo (1975) são alguns títulos dessa época. Fez também incursões de nicho, como no suspense psicológico O Anjo da Noite (1974), no metafilme Paixão e Sombras (1977) e no esotérico As Filhas do Fogo (1978).
Até aqui, o leitor pode se perguntar por que, com semelhante currículo, Khouri haveria de ser diluído na historicidade. Diríamos que, em grande medida, o escrutínio de caráter ideológico coletivo era mais urgente que as individualizações, consideradas politicamente alienadas, no cenário geral do cinema brasileiro.
A partir de meados dos anos 1970, o cineasta buscou verba para seus filmes no cinema da Boca, de onde surgiam certos filmes que apostavam na comédia de duplo sentido, na nudez banal e na pornografia softcore. Mesmo assim, não abriu mão de seu projeto de poética pessoal. Wilfred Khouri, músico, filho de Walter, afirma que trabalhar em tais condições “era um problema pela pressão dos produtores para tornar o filme mais comercializável, mas ele sempre soube contornar”. Em verdade, não só contornou, mas criou um estilo pessoal de enfocar o corpo e o sexo de maneira a valorizar a conotação psicológica da luxúria e dos personagens em busca de transcendência, uma ascese carnal. Para além disso, o sexo se tornou uma metáfora e um reflexo da deformidade moral coletiva.
É conhecido o episódio do “filme pornográfico da estrela infanto-juvenil”, que não é um filme “da estrela infanto-juvenil” – ela desempenha um papel coadjuvante – e nem é “pornográfico”. Amor, Estranho Amor, de 1981, retrata a alcova das casas do meretrício de luxo como tabuleiro no jogo político, durante a noite de 10 de novembro de 1937, quando o Estado Novo despencou sobre a nação enquanto um garoto de 12 anos descobria que a vida é errática e encerra finais abertos. Igualmente, é um filme que critica o descaso pelos patrimônios históricos da cidade de São Paulo. É uma obra sobre as contradições da memória.
Por outro lado, seu personagem-chave, por vezes tomado como alter ego, Marcelo, é um caçador na metrópole paulistana que não conhece sua presa e se perde no ermo travestido de prazer irrestrito. É uma figura que perpassa a filmografia de Khouri e encerra sua carreira. Em Paixão Perdida (1998), seu último filme, o cineasta consolida o cinema como tempo esculpido. A ação é reduzida ao mínimo necessário para efeitos diegéticos e se limita a cumprir o exame da estagnação do homem frente à sua natureza, irreverente e morta.
Com tal pluralidade e tamanho domínio da arte cinematográfica, Walter Hugo Khouri se tornou “cerebral” demais para certa vertente da crítica e está esgotado no mercado de home vídeo desde 2003. Para Wilfred, isso se dá pela falta de interesse do mercado por obras de tal densidade. O herdeiro do cineasta trabalha com a divulgação da obra do pai no exterior, mas não vê possibilidades no Brasil, por enquanto.
Há urgência no resgate da obra de Walter Hugo Khouri. Nela, há um cineasta que supera comparações provocadoras com Antonioni e com o próprio Bergman, a quem ele dizia não se identificar tanto. Rever Khouri é olhar para o cinema como um artesanato de minúcias, uma estética metafísica. Dizia o próprio: “Os filmes se fazem através de mim. Não sou eu quem os faço.” *Donny Correia é crítico, escritor, doutor em estética e história da arte pela USP
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.