Depois de levantar um debate nacional nos Estados Unidos sobre as leis de tutela e reacender o interesse da mídia na Princesa do Pop, o documentário Framing Britney Spears chegou no último sábado, 19, ao catálogo do Globoplay. Em pouco mais de uma hora, o filme narra a ascensão meteórica de uma das artistas mais conhecidas mundialmente, culminando na conservadoria em que ela vive pelos últimos 13 anos e que garante ao seu pai, Jamie Spears, o poder legal de controlar sua vida e suas finanças.
Produzido pelo The New York Times em parceria com Hulu e FX, o documentário usa imagens de arquivo e entrevistas com pessoas próximas a Britney Spears para analisar como uma das principais estrelas pop dos últimos anos se tornou uma prisioneira de sua própria fama. Ao invés de trilhar o caminho fácil e ater-se ao sucesso profissional que ela alcançou em uma carreira consolidada ao longo dos últimos 23 anos, Framing explora o impacto da mídia e da imprensa na vida pessoal da artista, antes de mergulhar no movimento #FreeBritney.
Em 2021, no mundo pós-Me Too e com a existência de redes sociais ou apenas do bom senso coletivo, é inimaginável que jornalistas e apresentadores de TV perguntem a uma adolescente em rede nacional se ela é virgem ou se seus seios são reais. Porém, como fica claro no filme, esses foram apenas alguns dos muitos absurdos que Britney precisou suportar enquanto crescia sob as lentes da mídia e se tornava uma mulher adulta que explorava a própria sexualidade em músicas, videoclipes e ensaios fotográficos.
Imagens de Britney perseguida por dezenas de paparazzi, tendo sua capacidade materna questionada em capas de jornais e seu ex-namorado, Justin Timberlake, gabando-se publicamente de ter transado com ela são intercaladas com depoimentos em que a própria estrela se queixa dessas cobranças. Um dos momentos mais impactantes é também aquele em que a artista aparece mais vulnerável, quando, grávida do segundo filho, ela desaba durante uma entrevista e, entre lágrimas, diz que seu maior desejo é ser deixada em paz.
Esse revisionismo sobre o escrutínio midiático ao qual Britney foi submetida ocupa metade do filme e não chega a ser exatamente uma novidade, exceto na forma com que a diretora Samantha Stark o condena. Mesmo assim, ele estabelece uma dimensão do quanto a figura da artista era lucrativa para tablóides, o quão desumano era o tratamento direcionado a ela e o quanto Britney tentou se desvencilhar dessa perseguição sem sucesso, até ser colocada sob uma tutela permanente.
Em fevereiro de 2008, após duas internações em clínicas psiquiátricas e uma persona pública em ruínas, o tribunal da Califórnia declarou que Britney era incapaz de cuidar de si mesma e garantiu a Jamie Spears o papel de tutor permanente da filha, mantido até hoje. Na prática, é ele quem decide o que ela pode fazer com o próprio dinheiro e autoriza ou não todos os aspectos de sua vida, desde com quem ela se encontra e aonde vai até se ela pode ter filhos ou se casar. Aos 39 anos e com uma fortuna milionária no banco, a Princesa do Pop precisa pedir ao pai para comprar um café, viajar, dirigir, gravar uma música, receber amigos na sua mansão ou dar uma entrevista.
É ao entrar nesse terreno que Framing Britney Spears realmente decola e, para isso, conta com dois grandes trunfos: as entrevistas com Felicia Culotta, assistente e amiga pessoal da artista desde o início da sua carreira, e Adam Streisand, o advogado que ela tentou contratar em 2008 para defender seus interesses no caso. Ambas as figuras são cruciais para entender o episódio e a cantora, e ao mesmo tempo são pessoas notoriamente reservadas, sem nunca antes terem mencionado o assunto publicamente.
Enquanto Felicia conta pela primeira vez que foi cortada da vida de Britney logo que a tutela começou, Streisand atesta que a estrela tinha apenas uma demanda em relação à conservadoria: que Jamie não fosse o tutor. Em documentos oficiais entregues à corte de Los Angeles e reproduzidos no documentário, Britney afirma ter medo do pai e, mais tarde, pede que seu caso não seja tratado como um "segredo de família".
Uma peça fundamental dessa história é também a ausência mais sentida em Framing Britney Spears: a empresária Lou M. Taylor, creditada pelo movimento como a grande arquiteta por trás da tutela e uma de suas principais beneficiárias.
Contratada por Jamie Spears para agenciar a filha, Lou é citada no livro Through The Storm: Uma verdadeira história da fama e da família no mundo do tablóide, lançado por Lynne Spears em 2008. Nele, a mãe de Britney diz que a ideia da tutela partiu da empresária, após ela ter convencido o pai da cantora que "Deus estava pedindo" para que ele tomasse o controle da situação.
Talvez a maior vitória do filme seja a de chancelar o movimento #FreeBritney como mais do que mera teoria da conspiração e tratá-lo como uma defesa legitimada pela própria Princesa do Pop, a qual parece ter seus direitos civis violados há mais tempo do que o público sabe. O interesse no tema também aumentou: a Netflix e a BBC já anunciaram oficialmente a produção dos seus próprios documentários e alguns deputados dos EUA já começaram a discutir se não é hora de rever as leis sobre tutela no país.
Mesmo assim, muitas perguntas, episódios e personagens continuam inexplorados e, para que essa história seja realmente contada de forma completa, continua faltando uma voz importante: a da protagonista.
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