Fran Lebowitz é um ícone da cidade de Nova York. Em 2021, a comediante e escritora (que não escreve há décadas) ganhou uma série documental do cineasta Martin Scorsese, seu amigo íntimo, Faz de Conta que NY é uma Cidade. Um sucesso na Netflix por mostrar Fran nua e crua – ela, obviamente trajando seus ternos bem cortados e calça jeans azul de barra dobrada. Um remédio para os tempos do politicamente correto. Ferina, Fran não poupa ninguém, às vezes, nem ela mesma.
Longe de ser sex-symbol (ainda que tenha sido considerada, quando jovem), Lebowitz aparece anualmente na lista de pessoas mais elegantes da cidade, segundo a revista Vanity Fair. Nepotismo? Talvez. Ela foi colaboradora da revista, fez amigos por lá e deixou rastro (fazia barulho e os leitores mandavam enxurradas de cartas à redação). Isso se repetiu em outras tantas publicações nas décadas de 1970 e 1980, período que assinou uma coluna de sucesso na revista Interview, a meca do jovem moderno e descolado da época.
São esses artigos que chegam ao leitor no Almanaque de Fran Lebowitz (Todavia), com textos pinçados de dois livros anteriores, Vida Metropolitana (1978) e Estudos Sociais (1981), editados no Brasil há décadas. Embora surjam já datados para leitores do século 21, os textos se justificam pela verve ali contida. Comportamento, alta e baixa cultura, artes, moda, bons e maus modos, Fran faz uma síntese de cada área. “Embora as roupas estampadas com imagens ou textos não sejam completamente uma invenção dos tempos modernos, elas são um indicador bastante negativo do estado geral das coisas.”, e completa: “Sejamos realistas. Se as pessoas não querem escutar o que você diz, por que você acha que vão querer escutar seu moletom?”.
Sejamos realistas. Se as pessoas não querem escutar o que você diz, por que você acha que vão querer escutar seu moletom?
Fran Lebowitz
Sua autora frequentou o jet-set cultural de Manhattan no auge da contracultura e da disco music. Nova York era um playground dos poetas beats que vinham da costa oeste para os arredores de Stonewall, artistas em início de carreira (nomes como Patti Smith, Mapplethorpe, Jamaica Kincaid, etc.), cineastas explorando as sombras de Nova York, o Rock’n Roll estourando com Beatles, Stones e Elton John lotando o Central Park vestido de Pato Donald.
Nas artes visuais, a pop art se espalhava pela cidade nos grafites de Keith Haring, com Liechtenstein, Basquiat e Andy Warhol, que fundou a Interview. Íntima de artistas, jornalistas e circulando pela alta sociedade, Lebowitz conquistava os leitores pela língua ferina, ela fez uma caricatura da elite cultural, mas não poupou cidadãos comuns de alfinetadas. Bastava ela não ir com a voz de um atendente de telemarketing e logo a pessoa era transformada no pior ser da face da terra. E toda razão é dada a Fran Lebowitz.
No texto ‘Eu Estou Bem, você não’, Lebowitz é demolidora na sua crítica aos agrupamentos. Acostumada a receber apenas amigos íntimos em casa, ela se justifica: “O fato de eu ser desprovida por completo de simpatia ou interesse pelo mundo dos agrupamentos pode ser diretamente atribuídos a que meus dois desejos e necessidades principais – fumar cigarros e planejar vingança – são, basicamente, atividades solitárias. É claro que, às vezes, um ou dois amigos aparecem e fumamos juntos e, eventualmente, eu troco algumas ideias sobre vingança com uma companhia interessada em ouvir, mas fazer uma reunião apenas para isso seria algo totalmente desnecessário.”
Os artigos de Lebowitz, que trafegam entre os gêneros do ensaio, humorismo e a crônica, exploram a marca humana a partir das falhas. São as imperfeições o foco: as modas passageiras (que deixam as pessoas cafonas), os intelectuais verborrágicos (que hoje seriam comparados aos filósofos das redes sociais, que falam muito e pouco têm a dizer); os artistas incompreendidos (ególatras), são prato cheio para a mulher que, 50 anos depois, continua enchendo plateias em seus monólogos.
Fran Lebowitz fala sobre tudo e sobre todos sem desconforto. Ela expõe suas fraquezas ao leitor. Admite ser preguiçosa, rabugenta, perfeccionista, impaciente, amarga, pessimista e mordaz. Fran Lebowitz carrega o fardo da franqueza, qualidade atemporal, tão em falta na era das redes sociais, em que manter as aparências é tudo que resta para sair bem na foto.
Sem redes sociais, computador, bugigangas tecnológicas, Fran Lebowitz captou os vícios do ser humano em estado natural, seja em suas caminhadas pelas ruas de Nova York ou nas festas mais exclusivas. Os pecados são atemporais, e ela documentou todos, como um Instagram dos anos 1970 nos dias atuais.
O ALMANAQUE DE FRAN LEBOWITZ
FRAN LEBOWITZ
TRADUÇÃO DE ANDRÉ CZARNOBAI
TODVIA
288 PÁGINAS
R$ 47,90 ou 49,90 (E-book)
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