Em 1912, findo o réveillon, o escritor Franz Kafka (1883-1924) decidiu fazer um de seus costumeiros balanços de vida. Para tanto, escreveu as reflexões em seu diário, aquele que preenchia especialmente durante horas tranquilas, as noturnas, nas quais o silêncio parecia reinar na casa onde morava com a família, contígua à loja de produtos de luxo administrada pelos pais e irmãs, em Praga. Tinha 28 anos. Trabalhava pela manhã numa corretora de seguros, descansava à tarde, estava a um ano de escrever “O veredicto”, o primeiro texto a concretizar sua concepção literária, e pensava que o insucesso amoroso não poderia atormentá-lo mais. “Quando ficou claro em meu organismo que a escrita era a tendência mais produtiva do meu ser”, escreveu, “tudo o mais acorreu ao seu encontro, esvaziando todas aquelas capacidades que, de início, dirigiam-se para as alegrias do sexo, da comida, da bebida, da reflexão filosófica e da música”.
É quase certo que Kafka tivesse um organismo literário, por assim dizer. Mas por que a literatura excluiria necessariamente sua realização no amor, ainda mais naquele momento em que mal pusera seus escritos à prova pública? O motivo não seria religioso, considera o biógrafo alemão Reiner Stach em Kafka: Os Anos Decisivos”. Neste livro extenso, tantas vezes primoroso, a revirar com clareza erudita até mesmo a necessidade de as biografias existirem, considera-se que o fracasso literário não é uma opção para Kafka, enquanto o amoroso, ele talvez pudesse suportar. Um escritor, ele dizia, nunca estava suficientemente sozinho para escrever. De modo a continuar produzindo com energia, até mesmo contra a birra do pai, que não queria vê-lo dormir depois do almoço, ele poderia encontrar qualquer desculpa interior, fosse contra o amor ou contra o consumo de café e carne, embora a realidade às vezes teimasse em contradizer essas determinações.
Pouco depois de avaliar que a paixão seria inalcançável para ele, uma vez que seu “organismo” nascera para a escrita, Kafka se enredou amorosamente de forma quase inexplicável por uma trabalhadora doce e obscura de classe média, Felice Bauer, mais interessada na obra do dramaturgo August Strindberg que na dele próprio, e dedicada à família de maneira profundamente compulsória, mais do que a si mesma. Ela era próxima do amigo Max Brod, um dos solteiros de seu grupo social de escritores (e aquele que, além de escrever sua biografia, recusaria o pedido do amigo para que queimasse seus originais). O envolvimento de Kafka com a jovem distante, moradora em Berlim, acabou por consumir muitos daqueles momentos de impulso criativo que ele esperava reservar para a escrita. O autor de A Metamorfose não parecia mesmo caber na autoimagem de celibatário infeliz.
Esta biografia dos anos iniciais, que se faz a partir do espólio de Felice, descoberto por Reiner Stach nos Estados Unidos, inclui as cartas do escritor à amada (sem o contraponto das respostas de Felice, que Kafka destruiu), sempre entremeadas pela crença segundo a qual, para segui-lo, sua noiva deveria se prontificar a viver o inferno em vida. O raciocínio de Kafka, explicitado até mesmo ao pai dela, era simples, e caminhava pelo entendimento pequeno-burguês enraizado em seu meio social. Seria possível compartilhar o leito com quem não via outra razão para a existência exceto escrever, ademais sem ganhar dinheiro suficiente para isso?
O biógrafo Stach, de 71 anos, é treinado no entendimento literário, filosófico e matemático. Seu poder de investigação parece infindo, embora ele veja no leitor médio o seu objeto, razão pela qual, ao escrever, jamais ceda à obscuridade. Como historiador cultural, Stach considera não apenas os fatos que cercaram a vida do escritor judeu em língua alemã na antiga Checoslováquia, mas também o conceito de sucesso e de fracasso literários naquele palco onde Kafka, em busca de concretizar sua visão, desconsiderou a gravidade da 1ª. Guerra Mundial (é celebre a entrada em seu diário na qual diz ter ido nadar à tarde depois de decretado o conflito de manhã), distanciou sua literatura do sionismo militante praticado pela figura controversa de Brod e exerceu o humor aprendido no teatro iídiche mesmo em textos improváveis de sua autoria, como O Processo, cujo primeiro capítulo ele lera habilmente em voz alta de modo a provocar a risada dos amigos.
O flerte obsessivo com Felice foi uma prova muito dura. No verão de 1912, deu-se seu encontro com ela, e a difícil decisão de cortejá-la de maneira quase totalmente epistolar. Dois anos depois, aconteceu o rompimento do noivado. Nas duas vezes, diz seu biógrafo, Kafka sentiu estar sendo empurrado para a margem de sua própria existência. Nas duas vezes, ele mobilizou uma poderosa vontade de entrar nos moldes para combater a dissolução mental. Stach compreende estar lidando com uma mente poderosa e não busca rivalizar com ela, antes compreendê-la, algo seguro de que vai fracassar. Ele sabe que tudo o que percebe, Kafka aplica no que escreve, às vezes composições inteiras primeiramente deitadas nos diários que vão se tornar pequenos livros. Seu biografado está imbuído da perfeição, ciente de que sua missão é distinta de todos à volta, até mesmo do escritor Robert Musil, que o aceita no meio literário com reservas. Kafka era único no que fazia e podia provar.
Os melhores momentos da biografia situam-se na constatação da diferenciação deste saber. O que torna Kafka tão distinto de todos os artistas que o cercavam? Não era somente sua linguagem direta, enxuta, moderna, que certa vez obrigou um editor a aumentar o tamanho dos tipos e o entrelinhamento das páginas para apresentar ao mercado literário um volume de tamanho razoável contendo seus textos. A grandeza de Kafka estava no entendimento total que ele tinha de uma situação antes de relatá-la. Ao contrário do romancista polonês de língua inglesa Joseph Conrad (1857-1924), por exemplo, que certa vez disse ter construído a protagonista Winnie Verloc, de O Agente Secreto, a partir de observações coletadas ao acaso, Kafka começa a produzir a partir de um reservatório de ideias “que já está cheio”.
Em seus diários, pode-se ler a evolução dos pensamentos que vão resultar em um futuro texto. Os diários comprovam que os campos de tensão, as metáforas, os gestos e os detalhes já estão prontos, frequentemente até na forma exata que terão no futuro. “Kafka não trabalha o abalo sofrido, ele trabalha o material acumulado que foi liberto pelo abalo”, observa Reiner Stach. “Assim se explica que as referências e associações entre os elementos visuais e linguísticos de seus textos tenham uma densidade tão única e desafiadora. Tudo parece corresponder a tudo. É como se Kafka não precisasse inventar ou desenvolver mais nada e pudesse usar toda a sua força criativa na integração, na perfeita articulação de todos os componentes.”
Mais que isso, ele constrói uma tensão que não será resolvida pela saída tradicional, a morte. A tensão em Kafka provém de uma perspectiva inusual para seus contemporâneos. É uma perspectiva que expõe apenas o que está dentro do horizonte de percepção do protagonista. O leitor entra em um estado de identificação cada vez mais forte com esse personagem, como se estivesse “sob o efeito de um campo gravitacional”, no dizer de Stach. É o caso de A Metamorfose, um texto que Kafka escreveu enquanto permanecia obsedado pela conclusão de outro texto, “O desaparecido”, e que não sentia a menor urgência em editar, tão espontâneo fora escrevê-lo e concluí-lo. A Metamorfose nascera da sensação de que nem mesmo sua única confidente, a irmã Ottla, aceitava sua necessidade de se distanciar de um empreendimento familiar, uma fábrica de amianto na qual a família desejava ter seu empenho, justamente nas horas vespertinas de descanso. Ele chegara a um ponto de desvalorização pessoal sem volta, como uma barata pisada, conformada com seu destino. Kafka sempre quis ser publicado, mas jamais desejou aparecer. Especialmente, aparecer com este livro foi uma espécie de fim.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.