O Brasil tem hoje 1.240 faculdades de Direito “e não há mestres e doutores em número suficiente para lecionar (em todos eles)”. Com a internet, o estudo dos fundamentos do Direito “foi definitivamente esquecido” -- e “o jovem da geração Z está desacostumado a ler”. Na política, assiste-se a um “silencioso pacto pela omissão que impede que se mexa em privilégios” e “a reforma que falta é a política”. É com frases assim, e com a experiência de quem foi ministro da Justiça (no governo FHC) e presidiu a Comissão de Mortos e Desaparecidos nos anos 1980, que o jurista Miguel Reale Jr. completa, nesta quinta-feira, seus 80 anos de vida – marcados também por uma intensa atuação na advocacia criminal.
Para marcar a data, amigos, ex-alunos, colegas e juristas decidiram homenageá-lo com um simpósio, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em que se debaterão dois temas que são caros ao aniversariante: a Parte Geral do Código Penal e a Lei de Execução Penal. Nomes como José Carlos Dias, que abrirá o encontro no dia 25 (às 20h30), Mario Sarrubbo e Oscar Vilhena, que o encerrará no dia 26 (às 12h30), participam dos debates. Neste balanço de carreira feito à coluna, Reale Jr. deixa uma advertência sobre o futuro: “Essa decadência repercute no nível ético. Precisamos reagir e exigir leitura”.
Mergulhado por cinco ou seis décadas no mundo do direito e das leis, quais foram as experiências marcantes, para o sr. e para o País?
Sob o aspecto pessoal, creio que as melhores experiências como advogado criminal estiveram na defesa perante o júri, como, por exemplo, apresentando, pela primeira vez, slides reproduzindo a dinâmica do fato, essencial para compreensão do acontecido. No plano do interesse geral, ter exercido em 1977 e 1978 a presidência da Associação dos Advogados de São Paulo foi experiência relevante em momento de luta contra a ditadura. Sem dúvida, a participação, ao lado de colegas extraordinários, na elaboração, faz 40 anos, de anteprojetos de reforma da Parte Geral do Código Penal e da Lei de Execução Penal foi desafiadora. Importante, também, ter sido assessor especial do presidente Ulysses Guimarães, vivendo por dentro o processo constituinte, quando pude presenciar os confrontos que marcam nossa sociedade. Destaco, ademais, a presidência da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, de 1.995 a 2.001, apurando a responsabilidade do Estado pela morte, muitas vezes sob tortura, de opositores do regime militar.
Pode comparar o que é hoje a formação de um advogado com a dos seus tempos de estudante? As escolas hoje dão uma boa formação?
O Brasil conta hoje com 1.240 Faculdades de Direito, quando em todo o mundo a soma de cursos de direito é menor. Apesar de terem aumentado os cursos de pós-graduação, não há mestres e doutores em número suficiente para lecionar em tantas faculdades. Com a internet, então, o estudo dos fundamentos da Ciência do Direito e de cada uma das suas especialidades foi definitivamente esquecido. O jovem da geração Z está desacostumado de ler. Professores ensinam com figuras no power point ou por observações em tiras, sem qualquer discussão da dogmática, das estruturas dos institutos jurídicos e das relações entre eles e o Ordenamento no seu todo.
Como se pode mudar essa situação?
Precisamos reagir e exigir leitura. Esta decadência e proliferação do ensino jurídico repercutem na produção do direito por meio de advogados, juízes, promotores, cuja admissão na carreira exige apenas decoração de manuais de mera informação, sem visão crítica, que aliás não interessa. E esta decadência repercute também no nível ético.
A atual Constituição já sofreu, em 36 anos, mais de 130 alterações. É normal, isso? Era ruim e foi melhorando. E há coisas importantes ainda faltando?
A Constituição de 1988 é um texto compromissório, construído via entendimento em temas essenciais – ou, senão, delegando-se a definição para lei complementar. Ela seria outra se feita em 1989, após a queda do Muro de Berlim. Mas a própria Constituinte considerou a possibilidade de ampla alteração em cinco anos. No entanto, resultou em nada graças ao silencioso pacto pela omissão: não mexia no direito e privilégio da corporação A, que não se mexe no privilégio da corporação B.
Pelo caminho, ela mudou o sistema de governo...
A Constituinte foi parlamentarista até março de 1988, quando, por interferência do presidente (José) Sarney, adotou o presidencialismo gerador de crises repetidas ao longo de 35 anos. O plebiscito manipulado por candidatos à Presidência manteve o presidencialismo. A reforma que falta é a política.
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