Duas eras chegaram ao fim este mês, com cinco dias de diferença: a era da rainha Elizabeth 2ª e a era de Jean-Luc Godard. Vi as duas nascerem, a primeira tão desinteressadamente quanto acompanhei seu desenrolar, a segunda com o entusiasmo juvenil de um cinéfilo já familiarizado com as ideias de Godard desde o tempo em que ele ainda assinava seus artigos na revista Cahiers du Cinéma e no semanário Arts com o pseudônimo de Hans Lucas.
Sua clássica definição de cinema como “a verdade 24 vezes por segundo” ganhou relevância oracular junto a cineastas do mundo inteiro. Mas de suas tiradas, entre as tantas, em geral peremptórias, que fez (“Nicholas Ray é o cinema”, por exemplo), as mais marcantes, para mim, foram sobre o estilo de Hitchcock (“ele filma caras como se fossem bundas e bundas como se fossem caras”) e o “maior equívoco” de Orfeu Negro. Por ele, Godard, Eurídice chegaria ao Rio não de barca, mas de avião, “aterrissando no aeroporto mais bonito do mundo”, o Santos Dumont de 64 anos atrás.
Para os cinéfilos cariocas, a Era Godard começou na noite de 24 de abril de 1961, quando da première de À Bout de Souffle (Acossado) no auditório da Maison de France.
Saímos da sessão entre fascinados e aturdidos com a avassaladora exibição de inventividade, souplesse, e desrespeito aos cânones narrativos da época. E ainda ganhamos, além de um novo gênero (o film noir existencialista) e um novo anti-herói (Michel Poiccard/Jean-Paul Belmondo) decalcado em Jean Gabin e Humphrey Bogart, uma paixão para a eternidade, Jean Seberg. Acossado foi a Sagração da Primavera para a geração que logo a seguir amaria os Beatles e os Rolling Stones. Cidadão Kane, descobriu-se, não havia sido o primeiro grande baile do cinema moderno, como se acreditava, mas o último grande baile do cinema antigo. Foi Godard quem, a rigor, introduziu o cinema à modernidade, pervertendo o thriller, o musical, o drama de guerra, a ficção científica e outros gêneros formatados e consagrados por Hollywood.
Sabíamos tudo sobre Acossado e seus bastidores, identificávamos os locais das externas em Paris e até os intérpretes bem mais obscuros que o do diretor Jean-Pierre Melville, o paródico Parvulesco, cujo sonho é morrer e tornar-se imortal. Reproduzíamos entre amigos as falas, os calemburgos de Belmondo (“Maintenant, je fonce, Alphonse”), as gírias e os palavrões disparados em cena, noves fora as citações literárias (Faulkner, Dylan Thomas), que depois perceberíamos indissociáveis da estética godardiana.
O amor pela leitura, a devoção às palavras, eis o que, no fundo, mais aprecio nos filmes de Godard. Personagens que leem – e até comentam o que leram – são cada vez mais raros na tela, monopolizada por gente que no máximo lê jornal e revista. Até brigar com livros os personagens de Godard já brigaram; não atirando brochuras uns nos outros, mas agredindo-se verbalmente com os títulos de obras literárias colhidos a esmo numa estante, como Anna Karina e Jean-Claude Brialy fizeram em Uma Mulher é Uma Mulher.
Godard irritou à beça os nossos milicos, que o consideravam um perigoso subversivo. Era mesmo – no melhor sentido da palavra. A ditadura proibiu A Chinesa, depois liberado porque o coronel que chefiava a Polícia Federal não entendera patavina do que Jean-Pierre Léaud e seus amigos maoistas discutiam diante da câmera, embora falassem em francês, não em chinês. Em Masculino-Feminino, Léaud lia um manifesto contra a prisão de intelectuais pelo governo Castelo Branco. Claro que deu galho.
Consta que Godard ajudou financeiramente a Aliança Libertadora Nacional, de Marighella. No entanto, o mais rumoroso atrito entre a censura brasileira e o cineasta ocorreu já na Nova República, quando o governo Sarney baixou a crista para as lideranças católicas e proibiu Je Vous Salue, Marie. R.I.P., Jean-Luc.
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