Gravação da turnê final de Miles Davis e John Coltrane é lançada

Apresentações mostram ponto em que os jazzistas se separaram em seus caminhos criativos

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Por João Marcos Coelho

Somos capazes de empilhar rapidamente as obras-primas de gênios como o trompetista Miles Davis (1926-1991) ou o saxofonista John Coltrane (1926-1967): Birth of Cool, Kind of Blue, Bitches Brew para Davis, ou My Favorite Things, Afro-Blue Impressions e A Love Supreme para Coltrane. Mas nos esquecemos daqueles momentos de transição, em que o novo se forja num dos músicos, mesmo interagindo com os demais, ainda viajando na zona de conforto. São, embora desequilibrados, instantes mágicos, de fricção. Não são produtos acabados e prontos para consumo como “obras-primas”. Em vez disso, registram as faíscas da invenção querendo se sobrepor ao piloto automático. 

O trompetista de jazz Miles Davis 

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No caso, um piloto automático que no ano anterior fizera a revolução modal no jazz moderno (em vez de improvisarem sobre a progressão harmônica do tema, os músicos passaram a criar sobre diferentes escalas, ou modos). Uma portentosa revolução estética. A turnê europeia mostraria ao vivo este novo jazz ao Velho Continente. Mas Coltrane já gestava outra revolução. No meio tempo entre a gravação de Kind of Blue e a turnê de 1960, assistiu aos shows do quarteto do saxofonista Ornette Coleman, que já praticava o free jazz, ou seja, a improvisação coletiva sem nenhum pressuposto harmônico, rítmico ou melódico. Improviso total. Coltrane chegou a levar Miles para assistir Ornette. O trompetista saiu dizendo que “estes caras estão bagunçados por dentro pra fazer este tipo de coisa”. Coltrane, de seu lado, teve até aulas informais com Ornette.

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Pela primeira vez, podemos ouvir com qualidade técnica decente esses momentos da carreira daqueles dois gigantes. Desde a morte de Davis, a Columbia Legacy/Sony, tem fatiado os registros de shows do trompetista na série Bootlegs. 

O sexto volume, Miles & Coltrane – The Final Tour, acaba de ser lançado e está disponível nas versões física e digital. É precioso porque retrata a “decolagem” de Coltrane enquanto seus quatro parceiros permanecem na pista da zona de conforto que o sucesso planetário de Kind of Blue lhes proporcionara. Os quatro CDs trazem os derradeiros cinco shows do lendário quinteto original entre 21 e 24 de março de 1960, na Europa: ao trompete, Davis; ao sax-tenor, Coltrane; ao piano, Wynton Kelly (pena que o pianista não tenha sido Bill Evans, o real arquiteto de Kind of Blue); Paul Chambers ao contrabaixo; e Jimmy Cobb à bateria.

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Foram dois shows no Olympia de Paris; um em Copenhague; e dois em Estocolmo. O repertório parte de duas gemas do Kind of Blue (So What, presente em quatro shows, e All Blues, só em um) e na sequência explora velhos conhecidos, como On Green Dolphin Street, Walkin’, Bye Bye Blackbird, ‘Round Midnight de Monk e Oleo, de Sonny Rollins.

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Duas faixas são particularmente interessantes, porque traduzem bem o desconforto de Miles. Ele chegou a reclamar que o saxofonista fazia solos longos demais. Mas o que o incomodava de verdade era o contraste cada vez mais flagrante entre eles. Seu trompete é apolíneo, sem vibrato, sutilíssimo em sua exploração de timbres. Características que o mundo já conhecia há pelo menos uma década.

Mas o dionisíaco sax de Coltrane promove uma “ocupação” muito mais extensa das performances (em Walkin’, no primeiro show em Estocolmo, por exemplo, Miles improvisa por pouco mais de três minutos, mas o solo de Coltrane chega a seis). Isso não geraria maior desconforto. O problema é que seus solos começam sempre bem comportados; aos poucos, crescem até explodir em tercinas delirantes, cascatas de notas e multifônicos (técnica de tocar duas ou três notas simultâneas em instrumentos melódicos como o saxofone). Tamanho paroxismo parece um corpo estranho nas performances desta Final Tour.

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Outro exemplo matador é All of You, que abre o primeiro show parisiense. No total são 17 minutos. Mas dos 4’ aos 9’30’’, Coltrane destoa tanto que o público começa a apupá-lo. Ele vai tão longe que a certa altura entoa fragmentos do tema para os parceiros se localizarem em seu frenesi praticamente free. O solo inicial de Miles, assim como o de Chambers e Cobb, são intensamente aplaudidos. Claro, não fizeram nada diferente do que estava no bolachão. Afinal, o público não gosta de sair de sua zona de conforto. 

Para nós, que ouvimos estes momentos tão especiais do jazz pelo retrovisor, é fácil valorizar Coltrane e arranhar, um pouquinho que seja, a imagem de Davis. Seria um erro. Davis continuou revolucionando o jazz nos anos seguintes, numa parceria genial com o arranjador Gil Evans em peças orquestrais com seu trompete olímpico reinando em Sketches of Spain e Porgy and Bess, entre outras gravações antológicas. E também eletrificou-se quase na virada dos anos 1970 com obras-primas ariscas como Bitches Brew e In a Silent Way. De seu lado, Coltrane encontrou-se com seu quarteto onde brilharam dois parceiros incendiários: o caudaloso pianista McCoy Tynes e o explosivo baterista Elvin Jones, além do ótimo Jimmy Garrison ao contrabaixo. Juntos, chegaram às duas vertentes que o saxofonista já prenunciava na Final Tour: de um lado, A Love Supreme, obra-prima de 1964, tão importante quanto o Kind of Blue de cinco anos antes; de outro, o engajamento na luta contra a discriminação racial em músicas como Alabama e o abraço definitivo no free informal e nas raízes africanas em Afro-Blue Impressions. Mas estas já são outras histórias. Fiquemos com a aula magna de Davis e Coltrane, em que o primeiro, mesmo a contragosto, teve a rara generosidade de dar espaço para o segundo afirmar-se. *João Marcos Coelho é jornalista, crítico musical e autor do livro 'Pensando as Músicas no Século XXI' (Perspectiva) 

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