Em editorial de um dos programas TV Mulher, em 1980, a apresentadora Marília Gabriela disse que as mulheres haviam se reunido em debates e congressos a fim de discutir problemas sérios: “a tradicional discriminação em todos os setores, principalmente no trabalho, a validade ou não da legalização do aborto, passando pela necessidade de creches e a divisão do trabalho doméstico”, dizia o texto.Passados 40 anos, a pauta dos debates em torno dos problemas enfrentados pelas mulheres atualmente não é muito diferente.
Todos esses temas, e tantos outros relacionados ao universo feminino, alguns ainda tabu à época, como a sexualidade, ocupavam as manhãs da TV Globo em um programa considerado revolucionário justamente por abarcar essas questões de forma clara para um público que ainda não estava acostumado a ver, ao menos na televisão, os debates estavam no rádio e nas revistas, um meio de comunicação de massa, a mulher como protagonista.
No ar de 1980 a 1986, o TV Mulher, criação do diretor Nilton Travesso, reuniu um time de apresentadores, além de Marília, Ney Gonçalves Dias, Clodovil Hernandes, Xênia Bier, Henfil, Irene Ravache, César Filho, Ala Szerman, Marisa Raja Gabaglia, Marilu Torres, Ney Galvão, Christiane Torloni passaram pelo programa em épocas distintas. Logo em seu início, a atração chegou a ter quatro horas e meia de duração, em substituição a uma programação que misturava desenhos animados e documentários.
O responsável pela criação do TV Mulher foi o diretor Nilton Travesso que, depois de criar, produzir e dirigir programas musicais e humorísticos nos tempos áureos da TV Record, entre 1950 e 1970, transferiu-se para a TV Globo, no Rio de Janeiro, para dirigir quadros do dominical Fantástico. Certo dia, levou ao José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, então superintendente da emissora carioca, a ideia de fortalecer o núcleo de produção em São Paulo. Com o aval, criou a TV Mulher e, em seguida, o infantil Balão Mágico e o Som Brasil, aos domingos.
“O Boni me perguntou o que eu queria fazer. Não tinha nada na cabeça, na verdade. Fiz uma pesquisa e percebi que não havia um programa dedicado à mulher, justamente em uma época em que ela começava a ficar mais presente na sociedade. Criei, então, um programa feminino para as manhãs. Apresentei para o Boni, ele gostou da ideia. Ele sempre foi muito apaixonado por ideias novas, isso abria espaço para ele pensar.O departamento comercial da emissora também achou viável. Na discussão de como seria de fato, falamos ‘é uma televisão para a mulher dentro da TV Globo. O que? Uma espécie de tv mulher?, perguntou o Boni’. E, assim, nasceu o programa. Foi um sonho que virou realidade e deu muito certo”, conta Travesso, atualmente com 86 anos, 67 deles dedicados à televisão.
Travesso conta que quando chegou aos estúdios da Globo em São Paulo, que ficavam na Praça Marechal Deodoro, na região central, deu de cara com Marília Gabriela, que trabalhava no jornalismo. “Marília foi uma pessoa que me ajudou muito a pensar no formato, nas pesquisas prévias. Ela disse que a ideia mexia com ela”, conta. Outra jornalista que logo se juntou à turma foi Rose Nogueira, que ficou responsável por escrever os editoriais do programa, lidos pela Marília logo na abertura.
Ainda durante o processo de criação da TV Mulher, outros quadros e apresentadores foram surgindo. Travesso decidiu colocar um homem junto à Marília e chamou o Ney Gonçalves Dias para comentar o editorial. Da época em que trabalhava no programa da Hebe, lembrou-se de Clodovil e criou um quadro que ficou famoso, no qual o estilista lia cartas das telespectadoras e criava modelos exclusivos para elas. “Eu gostava do Clodovil, da cabeça dele, apesar de ser desaforado, malcriado, meio moleque, às vezes. Ele era culto, inteligente”, diz Travesso. E não foram poucos os desaforos. Em um dos programas, Clodovil diz que “mulher maquiada demais fica igual travesti”. Em outro, manda uma menina de 11 anos que lhe pediu um croqui de um vestido para ir a um casamento brincar de boneca.
A educadora russa Ala Szerman foi chamada para um quadro no qual falava sobre cuidados com o corpo e com a saúde, uma preocupação não muito comum para a época. Marilu Torres ganhou um quadro sobre turismo e cultura de diferentes países.A advogada Zulaiê Cobra Ribeiro esclarecia questões ligadas ao Direito da Mulher.
Um dos quadros mais polêmicos do programa coube à então sexóloga Marta Suplicy, o Comportamento Sexual. A ideia de Travesso era falar de temas como a primeira menstruação e ensinar as mães a educarem sexualmente seus filhos.
Xênia Bier também era voz importante do feminismo na época, mesmo que às vezes, segundo Travesso, carregasse nas palavras. “Ela tinha um temperamento forte, violento. Para chamar a atenção das mulheres aos temas, ela queria agredi-las (na fala). Porém, ao mesmo tempo, ela me ouvia, atendia aos meus apelos para amenizar o tom”, conta.
A vinte dias da estreia, o programa ainda não tinha uma música de abertura. Travesso recorreu a uma paulistana, a roqueira Rita Lee, que, mesmo em viagem para Nova York, dias depois, ligou para o diretor e cantou os versos de Cor de Rosa Choque. A letra também era ousada: “Sexo frágil, não foge à luta/E nem só de cama vive a mulher”, dizia um dos trechos.
Para a socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes, professora da Unicamp, o momento em que a TV Mulher entrou no ar, no início de 1980, precisa ser analisado sobre dois aspectos. O primeiro, a expansão do feminismo nos Estados Unidos e na Europa, processo que havia se iniciado em 1968. No Brasil, era época de ditadura militar, iniciada em 1965. “Aqui no Brasil, no decorrer de 1968, ainda havia certo espaço para manifestações, como a Passeata dos 100 mil, de agitação estudantil e de mobilização cultural. A resposta foi o endurecimento da ditadura. Em 1975, com Ano Internacional da Mulher, abriu-se espaço para as mulheres, começa a imprensa feminista. De 1975 a 1980, as mulheres tiveram papel fundamental na redemocratização do país. Elas fizeram, inclusive, o primeiro movimento pela anistia. Elas estavam na vanguarda, deram a cara para bater. O feminismo entrou na moda”, diz Maria Lygia.
Censura
Com a “ousadia” de falar para as donas de casa com ousadia e inteligência, a TV Mulher não escapou dos olhares da censura federal, mecanismo criado pela ditadura militar em 1964 para controlar a expressão cultural, intelectual, comunicativa e científica. Um documento do Arquivo Nacional, datado de 1981, portanto, um ano após a estreia, mostra que houve uma discussão se o programa era de cunho jornalístico ou não – se não fosse, teria que passar pelo crivo da censura antes de ser exibido.
A preocupação das autoridades na época era com o quadro Comportamento Sexual, apresentado por Marta Suplicy, que, segundo o documento, fazia o uso de palavras de baixo calão e divulgava conceitos “moralmente deletérios” para a sociedade. O quadro TV Homem, conduzido pelo cartunista Henfil, incomodava por ser “hostil e sarcástico ao sistema político vigente”.
Outro documento, datado de fevereiro de 1984, diz que o quadro Comportamento Sexual tem sido motivo de “preocupação” da Divisão de Censuras e que os censores já haviam advertido o diretor do programa do incômodo que as questões abordadas por Marta causavam na censura, classificando o quadro como de “baixo nível”. O mesmo documento também diz que os diretores da TV Globo já haviam sido alertados anteriormente pelo fato de o programa ter entre seus apresentadores “um costureiro ostensivamente afeminado” - uma referência a Clodovil.
A atriz Irene Ravache chegou ao programa em 1982 para cobrir as férias de Marília Gabriela. Dois anos depois, com a saída de Marília, assumiu definitivamente um dos quadros mais importantes, o Ponto de Encontro, que trazia na meia-hora final, uma entrevista com uma personalidade. A primeira entrevistada foi a cantora Elis Regina, que se tornou a madrinha da atração e participou outras quatro vezes, até sua morte, em janeiro de 1982.
Entrevistar não era uma novidade para Irene, que já havia sido apresentadora de telejornal na TV Excelsior e na própria Globo.Na TV Mulher, ela conversou com o escritor americano Sidney Sheldon, com o piloto Ayrton Senna, o apresentador Chacrinha e a atriz Dercy Gonçalves, que classificou a roupa que Irene usava como “horrorosa”.“Dercy tinha toda a razão. Os anos 1980 foram a década de exagero, tudo muito enorme. Ela era escrachada, mas muito inteligente”, diz Irene, aos risos. De Senna, em início de carreira na Fórmula 1, aos 24 anos, ela lembra de sua timidez.
Entre as memórias de Irene, está o dia em que ela entrevistou um censor que ela diz não se lembrar do nome. “Ele censurava livros, jornais, nossas peças de teatro... Não era meu costume deixar um entrevistado sem graça ou desarmado, mas foi inevitável. Foi algo que me deu muito prazer, inclusive. Eu levei um lápis vermelho, que era como eles riscavam o que censuravam, e perguntei: o senhor lembra desse lápis? O Nilton (Travesso) não ficou chateado comigo, pelo contrário. Tínhamos uma pauta, mas também liberdade. Não era nada engessado e cada um dava sua assinatura ao programa”, lembra Irene.
“Era um tempo muito menos careta do que hoje, quando tudo está exageradamente careta. Era uma ousadia criativa. Não era uma rebeldia boboca ou para chamar atenção. Tudo tinha um propósito. Era falar, explicar. Eu ficava chocada como as mulheres eram privadas de coisas muito simples -, infelizmente, isso perdura até os dias de hoje.. Todos (do programa) eram muito engajados, não em um partido, mas em causas, com a cidadania” afirma Irene.
O fim da TV Mulher
Das lembranças não tão boas de Travesso, está o esforço que ele tinha que fazer para lidar com o ego de tantos apresentadores, todos com personalidade forte. Clodovil era um deles. Uma das histórias mais marcantes envolveu Xênia Bier e Marília Gabriela. A primeira, quando decidiu deixar o programa, atirou 7 moedas em Marília, em uma alusão à traição de Judas a Jesus. “Administrar o ego é difícil. Não me cansava acordar às 5 horas da manhã, dirigir o programa até o meio-dia e depois preparar o do dia seguinte. Mas, lidar com ego, me esgotava, pois a pessoa chega ao ponto de não te ouvir mais e seguir por um caminho totalmente errado”, conta.
Ao longo dos anos, o TV Mulher perdeu espaço na grade de programação da Globo e o tempo de programa foi diminuindo gradativamente. Os apresentadores originais deixaram a atração. Em 1984, o Balão Mágico já ocupava boa parte da manhã e o feminino ficou confinado das 11 ao meio-dia.
O TV Mulher saiu definitivamente do ar em junho de 1986 quando foi substituído pelo programa Xou da Xuxa. A apresentadora ocupou toda a faixa da manhã da emissora e transformou os programas infantis, que saíram das mãos das crianças – o Balão Mágico também foi extinto - e passaram a ser conduzidos por adultos.
Travesso diz que o programa durou o tempo que deveria ter durado. “A Globo já estava de olho na Xuxa, que era da TV Manchete, e queria dar mais espaço à programação infantil. O programa já tinha perdido o fôlego, as pautas estavam se repetindo. É igual a um show: um cantor não pode voltar aos bis, três, quatro vezes. Os aplausos vão se enfraquecendo”, compara.
O diretor, que foi um dos criadores do Saia Justa, até hoje no ar no canal GNT, diz não reconhecer o TV Mulher nos atuais programas da televisão aberta. Meses depois da estreia da Globo, a TV Gazeta colocou no ar o programa Mulheres em Desfile, que está no ar até hoje, com o nome apenas de Mulheres.“Hoje, os femininos levam 40, 45 minutos para fazer um cuscuz. Nós até falávamos de culinária, mas de um jeito mais romântico, em uma reportagem, estávamos sempre em busca de pessoas interessantes”.
Irene Ravache também cita o Saia Justa com um dos “filhos” do TV Mulher. “Nele, há uma discussão de temas. Gostava muito também da Fernanda Young, que não ficava apenas em assuntos femininos, e era super inteligente, antenada. Atualmente, a televisão brasileira está na fase de pulverização. Tudo muito rápido, superficial”.
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