Areias é uma cidade de 3,8 mil habitantes no chamado fundão do Vale do Paraíba, onde o tempo parece que parou. Os indicadores econômicos seguem na proporção inversa da maioria dos municípios paulistas, com um PIB per capita quatro vezes menor que o do Estado e a taxa anual de crescimento de 0,38%, enquanto São Paulo cresce 0,81%.
Na rua principal, calçada com pedras, um carro passa vez ou outra e os ruídos que mais se ouve são o assobio das andorinhas e a algazarra das maritacas. Antes não era assim: no auge do ciclo do café no Vale do Paraíba, em pleno século 19, a cidade já teve teatro com 300 lugares, no qual se apresentavam as mais famosas companhias de operetas do país. Teve uma população refinada, com modos e costumes afrancesados e um casario colonial que não chegava a dar inveja na então capital da República, Rio de Janeiro, mas tinha sua importância.
Ocorre que a alegria durou pouco e quando a terra se exauriu e a mão de obra ficou escassa, com a abolição da escravatura, a região entrou no mais profundo declínio. Coincide com essa época a chegada ao município de um jovem promotor público, com sobrancelhas grossas e unidas: José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), responsável por colocar a cidade no mapa literário do país com o lançamento, em 1919, do livro Cidades Mortas.
Formado em direito na Faculdade do Largo São Francisco, em São Paulo, em 1904, Lobato foi nomeado para servir em Areias três anos mais tarde e lá permaneceu até 1910. Nesse período, começou a se dedicar com mais afinco à leitura e a escrita, atividades para as quais já demonstrava aptidão desde os tempos de estudante. Mas ainda de forma amadora e desordenada.
Para fugir da monotonia e da falta do que fazer, Lobato leu naqueles três anos em Areias praticamente tudo de importante que se produzira no mundo. Brincando com amigos, chegou a comentar: “Em Areias recomeçarei com a leitura, porque é impossível que haja lá criminosos que deem trabalho a um promotor”. Nesse percurso, encontrou matéria prima para sua futura literatura, na decadência da terra e do homem que ali habitava.
Em carta de 2 de dezembro de 1907 a sua futura mulher, Maria Pureza da Natividade de Souza e Castro, a “Purezinha”, Lobato já reclamava do que sentia naquele lugar onde nada acontecia: “Que dose enorme de energia e paciência é preciso se ter para suportar o peso esmagador de um dia como o de hoje, chuvoso, quente, vazio, horrível.” Em outra correspondência, do dia 13 do mesmo mês, o jovem promotor falou novamente do tempo que não passava: “Tenho atordoado os meus dias por todas as formas, que é esse o melhor meio de enganar a insuportável lentidão em que eles correm”.
Ainda em 1907, em carta ao amigo ao amigo Godofredo Rangel, Lobato mencionou pela primeira vez a intenção de escrever alguma coisa sobre a cidade em que estava morando, inspirado nos relatos do escritor Euclides da Cunha, que vinha de publicar seu clássico Os Sertões (1902), sobre o homem sertanejo e a Guerra de Canudos.
“Areias, Rangel! Isto dá um livro à Euclides (e, por falar, Euclides passou uns tempos aqui, ocupando exatamente o quarto que é o meu). Areias, tipo de ex-cidade, de majestade decaída. A população de hoje vive do que Areias foi. Fogem da anemia do presente por meio duma eterna imersão no passado.”
Em outro momento, reconsiderou e achou que dali não sairia literatura possível: “Desta Areias onde apodreço há três meses nem o gancho dum Shakespeare tirava sequer um título de drama”, disse em outra carta.
Em 1911, Lobato herdou uma fazenda do avô paterno, o Visconde de Tremembé, também no Vale do Paraíba, e lá viveu por um curto período, tentando tornar a propriedade produtiva. Desavenças com funcionários e decepções com o mundo rural, entretanto, o fizeram vender as terras sete anos depois. Com o dinheiro, comprou a Revista do Brasil, em São Paulo, na qual publicou seus dois primeiros livros: Urupês (1918) e Cidades Mortas (1919).
Em Urupês, trouxe a público o personagem que desenvolvera na temporada rural, como dono de fazenda: o “piolho da terra”, preguiçoso caipira mais preocupado em causar queimadas do que produzir. Surgiu ali o famoso Jeca Tatu.
Já em Cidades Mortas, valeu-se das anotações de Areias para falar da decadência daquela região do Vale do Paraíba, depois da saída do café. Já na abertura de uma das histórias, utilizou os rascunhos do tempo de promotor para fazer paralelo com uma cidade imaginária chamada Oblivion. “A cidadezinha onde moro lembra soldado que fraqueasse na marcha e, não podendo acompanhar o batalhão, à beira do caminho se deixasse ficar, exausto e só, com os olhos saudosos pousados na nuvem de poeira erguida além”. Em outro conto do livro, que deu título a todo o volume, Lobato falou não só de Areias, mas do conjunto de cidades “moribundas” que se localizam na “depressão profunda que entorpece boa parte do chamado Norte” de São Paulo. “Ali tudo foi, nada é”, escreveu. “Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito”.
O livro logo alcançou grande repercussão e tornou seu autor figura nada bem vinda naquela região. “A expressão ‘Cidades Mortas’ gerou grande polêmica”, disse Marisa Lajolo, professora da Universidade Mackenzie e organizadora de Monteiro Lobato, Livro a Livro (Editora Unesp/2014), que reúne artigos que analisam a obra adulta do criador do Sítio do Picapau Amarelo. “Como se vê, desde seus primeiros livros, ele foi polêmico. Talvez hoje se possa pensar que essa é uma de suas grandes qualidades. E uma boa razão para lê-lo neste tempo nosso de certezas tão monolíticas.” *FERNANDO GRANATO É AUTOR DE 'O NEGRO DA CHIBATA' E DA SÉRIE 'MEMÓRIAS DO SERTÃO', SOBRE GUIMARÃES ROSA
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