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Horror e fantasia retratam a luta cotidiana na obra de escritoras latino-americanas

Autoras como Samanta Schweblin e Mónica Ojeda incorporam o insólito em seus trabalhos

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Por Benjamin P. Russell

Em um artigo de 1960 no New York Times, o tradutor e crítico José Vázquez Amaral relatou “notícias literárias marcantes do México e da América Central”: mulheres escritoras estavam “em marcha”.

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Na vanguarda se encontravam, escreveu ele, Amparo Dávila e Guadalupe Dueñas, autoras mexicanas cujos contos sinistros combinavam o fantástico com as restrições cotidianas e desafiantes impostas às mulheres da época. Antes de proceder a um “relatório um pouco menos entusiasmado” sobre o fazer literário dos homens, Vázquez observou que, graças às mulheres, em nenhum outro período da história latino-americana “apareceram tantos bons livros tão repentina e triunfantemente”.

Seis décadas depois, a genealogia literária de Dávila e Dueñas – para não mencionar a de Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e José Eustasio Rivera – está viva e passa bem. No México, Argentina, Equador e além, um número expressivo de escritoras está usando fantasia, horror e o desconhecido para inquietar os leitores e criticar os males sociais. Os comitês de prêmios, dentro e fora da América Latina, estão tomando nota.

“É uma coisa que vemos em toda a região, uma nova sensibilidade”, disse Carmen Alemany Bay, professora de literatura da Universidade de Alicante, na Espanha, que cunhou a expressão narrativa de lo inusual [algo como “narrativa do incomum”] para descrever a atual onda de escrita na região.

Elas apresentam situações em que o leitor é quem decide o que é possível e o que não é. É aí que mora a riqueza dessa literatura

Alemany Bay

Entre essas autoras “incomuns” se encontram as escritoras mexicanas Cecilia Eudave e Daniela Tarazona, a peruana Claudia Ulloa Donoso, a boliviana Giovanna Rivero e muitas outras. Suas histórias e técnicas são diversas: algumas são simplesmente estranhas, como na coleção de contos oníricos de Ulloa, Little Bird (Pajarito, Deep Vellum, 2021). Outras se aprofundam mais na fantasia, misturando-se com os modos tradicionais do terror gótico: no monumental Our Share of Night [Nuestra parte de noche], de Mariana Enríquez, que chega em fevereiro pela Hogarth, um médium doente que pode se conectar com os mortos tenta proteger seu filho de uma escuridão insaciável.

A escritora argentina Mariana Enriquez na 17ª Festa Literária Internacional de Paraty Foto: Walter Craveiro/FLIP

Talvez não surpreenda que sejam as escritoras a atravessar os cantos mais sombrios da ficção latino-americana contemporânea, pois vem ganhando força uma onda de frustração contra as restrições aos direitos das mulheres e o aumento da violência de gênero. Em toda a região, os movimentos de protesto liderados por mulheres se tornaram parte do cenário político nos últimos anos.

Mas essas histórias têm mais em comum do que meras coincidências estranhas, disse Alemany Bay. A “narrativa do incomum” em geral tem consciência social, explora a feminilidade de maneiras íntimas e não convencionais e questiona a natureza de nossos relacionamentos pessoais mais próximos, disse ela. As representações da vida normal não pretendem aumentar o efeito do fantástico ou do sobrenatural; em vez disso, o irreal é usado para aguçar a visão dos leitores sobre o que é verdadeiro.

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“Muitas dessas obras que saem dos limites da realidade são chamadas de ‘realismo mágico’, principalmente quando vêm da América Latina. Mas isso é um grande, grande erro”, disse Alemany Bay. “Elas podem conter elementos de magia, mas o fundamento não é esse”.

A escritora argentina Samanta Schweblin, que teve seus contos publicados recentemente no Brasil Foto: Suhrkamp Verlag

De fato, o sucesso recente dessas autoras já ampliou o que se entende por grande literatura latino-americana, cujo o “boom” dos anos 60 e 70 trouxe à tona realistas mágicos como Gabriel García Márquez. Este mês, depois de ganhar prêmios na Espanha e na América Latina, tanto a coleção de contos de Samanta Schweblin, Seven Empty Houses [Siete casas vacías], lançada em 18 de outubro pela Riverhead, quanto Jawbone [Mandíbula], de Mónica Ojeda, publicado em fevereiro pela Coffee House Press, foram indicados finalistas para o National Book Award de literatura traduzida.

Seven Empty Houses tem menos fantasia pura do que a coleção anterior de Schweblin, Mouthful of Birds [Pájaros en la boca]. Mas suas histórias são igualmente inquietantes. Escrito enquanto ela estava em processo de mudança – primeiro temporariamente, depois em definitivo – da Argentina para Berlim, o livro está repleto de uma sensação de deslocamento: uma idosa encaixota sua vida, uma jovem vai embora com um desconhecido, uma mãe e sua filha se infiltram nas casas dos ricos e reorganizam os móveis. Por toda parte, Schweblin parece empenhada em desfazer o senso de permanência de seus leitores.

Embora incômodo, o trabalho de Schweblin também está imbuído de crítica social: em Seven Empty Houses, o preconceito e as divisões de classe estão na frente e no centro. Seu romance pré-selecionado pelo Man Booker de 2017, Fever Dream [Distancia de rescate], ofereceu uma perspectiva literária sobre a fumigação de plantações usando glifosato, pesticida ligado a defeitos congênitos em áreas de cultivo de soja em toda a Argentina, como Aviá Teraí, cidade perto da fronteira do país com o Paraguai.

A literatura é extremamente política, mas é uma política que funciona melhor quando vem em espaços onde nenhuma outra política pode ir, um espaço mais delicado que não exige que se diga ‘OK, vamos falar de glifosato, porque alguém precisa falar disso

Samanta Schweblin

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Fiel à forma, o comentário social de Schweblin em Fever Dream atravessa o espaço entre o fantástico e o cotidiano, escrito inteiramente como um diálogo entre uma mulher moribunda e um menino que pode ser real ou imaginário. Na mesma linha, Jawbone, de Ojeda, que se concentra no sequestro de uma jovem por um professor obsessivo, usa o horror para explorar as ansiedades da adolescência e da feminilidade no Equador moderno.

“Sempre associamos o medo à feiura, mas acho que acima de tudo o medo está ligado à beleza”, disse Ojeda por e-mail. “O maior medo que podemos experimentar é a perda da beleza. Parecia natural pensar na adolescência a partir dessa perspectiva”.

Como Dueñas e Dávila antes delas, Ojeda e outras escritoras contemporâneas da América Latina usam diferentes meios para enfrentar as realidades muitas vezes tensas das mulheres da região. Mas sua forma de feminismo representa uma “evolução” da escrita do século passado, disse Alemany Bay.

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A escritora Brenda Lozano na cidade do México  Foto: Secretaria de Relaciones Exteriores/EFE

Na Argentina, no ano passado, foram registrados 251 feminicídios – assassinato de mulheres por serem mulheres – segundo dados oficiais. No México, o número foi de 1.004. Em Witches [Brujas], publicado em agosto pela Catapult, a autora mexicana Brenda Lozano usou o espaço entre o real e o irreal para explorar “diferentes níveis” de violência contra as mulheres – de expectativas sobre papéis de gênero a abuso e feminicídio.

A “bruxa” no romance de Lozano desafia as suposições sobre o que as mulheres devem ser, disse ela, usando a linguagem (e cogumelos selvagens) para curar doentes de uma forma que a medicina moderna não consegue.

“Minha super-heroína seria uma mulher capaz de fazer qualquer coisa apenas com suas palavras – mudar qualquer narrativa, como um poema impossível que vê tudo”, disse Lozano. “Talvez isso só fosse possível com a ficção.”

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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