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Paladar rombudo

O dia tem tudo para ser inesquecível, pensava eu ao deixar, qual Gato Borralheiro, o espartano estúdio parisiense onde vivia, para entregar-me a uma programação cujo luxo estava em total desacordo com as magérrimas finanças da minha pessoa física. Para ela não teria sido convidado, é claro, não representasse uma prestigiosa pessoa jurídica, o Jornal da Tarde, do qual era correspondente em Paris. 

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Haveria, primeiro, um almoço no Maxim’s, que cintilava então – janeiro de 1976 – no topo da lista dos melhores restaurantes de Paris, ombro a ombro com o Tour d’Argent. Em seguida, um voo de demonstração do supersônico Concorde, que dois dias mais tarde iniciaria voos regulares entre Paris e o Rio de Janeiro, viagem a ser feita em pouco mais da metade do tempo requerido pelo ainda soberano Boeing 707. 

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Já que estamos neste ponto, vamos logo à segunda parte da agenda, inolvidável também pela aflição que passei no ventre claustrofóbico de um avião onde não cabiam mais que 108 passageiros, e cujo estreito corredor provocava protestos até das comissárias de bordo, tão difícil era transitar por ele sem que a saia do uniforme enganchasse num braço de poltrona. 

O pior foi a assustadora decolagem, na qual o aparelho, esguio e pernalta, precisou engolir enorme quantidade de pista assentado apenas nas patas traseiras, bico para o alto num ângulo de 45 graus, como se no comando estivesse um desses exibidos que fazem empinar a moto ou a bicicleta. Rompida a barreira do som, em poucos minutos estávamos sobrevoando a Escócia, mas pouco se podia ver através das janelinhas, tão pequenas que nelas não caberia um adeus de mão inteira. À beira do pânico, ainda tive que ouvir do vizinho de poltrona, um jornalista argentino, no instante em que o Concorde bruscamente arrebitou focinho rumo às nuvens: “¿No te gusta la trepada?”.

A primeira parte do programa não fora mais gratificante. Culpa, provavelmente, do meu paladar rombudo e da provinciana reverência com que, já de antemão boquiaberto, adentrei o Maxim’s, do qual não esperava menos do que o máximo. Quatro décadas depois, ainda me lembro de cada degrau do menu composto para nos levar ao Céu da boca – nem precisaria ter guardado o souvenir impresso: Coquilles Saint-Jacques à la Nage Beurre Battu, Carré d’Agneau de Sisteron Rôti à l’Estragon e Mousse à la Framboise. Lembro da pompa & ênfase posta em cada uma dessas maiúsculas – mas, do sabor, quase nada, pois não chegou a se imprimir na memória das vísceras. Ainda à mesa, por pouco não cutuquei discretamente o comensal mais próximo: nós estamos gostando?

Pérolas ao porcos? Talvez. Mas não venha me dizer que também você, mesmo tendo passado por mesas louvadas e premiadas, não acabou guardando lembrança mais gratificante da comidinha despretensiosa de um restaurante modesto, desses que não têm estrela na testa nem nos guias. Eis que estamos em pleno território do óbvio: o que pode tornar frustrante uma incursão ao mais badalado dos templos da gastronomia, e inesquecível a passagem por cozinha plebeia, é o conjunto da obra, aí às vezes incluídas circunstâncias não necessariamente culinárias. 

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Mais do que as trombeteadas maravilhas do Maxim’s, minha memória gustativa reteve, por exemplo, e já se vão 40 anos, o peixe assado que me serviram num restaurante qualquer em Dinan, na Bretanha, numa dessas paradas para almoço. Reteve também, como se fizesse parte do menu, capaz de açular o apetite, a imagem da mulher correndo no quintal atrás do frango cuja carne gorda iríamos saborear dali a pouco ao molho pardo, naquele restaurante sem nome de beira de estrada, numa escala de viagem que fiz, menino, levado por meu pai, pelas entranhas de Minas Gerais. 

Talvez não fosse tudo aquilo a broa de milho entremeada de queijo no Solar da Ponte, em Tiradentes, não houvesse a manhã escandalosamente bela sobre a qual se pendurava a varanda onde tomei o meu café. Certamente, não eram tudo aquilo os meus escargots inaugurais, degustados no minúsculo Le Petite Bouclerie, hoje esquecível creperia, não marcasse aquele julho de 1970 também a minha estreia parisiense. Ou não houvesse ali o rigor francês, a um tempo cartesiano e apaixonado, com que uma senhorinha ajudou a escolher mesa, num arrazoado que levava em conta fatores como a iluminação, a ventilação e o vaivém do povaréu na Rue de la Harpe. Eu nem me havia sentado e já me sentia em clima de gastronomia. 

O que foi que eu comi a bordo do Concorde, com seus pratos da melhor louça e seus talheres de raça? Taí, não me lembro. Alguma coisa que, tanto quanto a supersônica “trepada” do colega argentino, no me gustó.

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