Sabe Nossa Senhora de Fátima que pecados não me faltam, alguns deles graúdos, mas não foi para purgá-los que visitei, faz alguns anos, a cidade portuguesa onde a Mãe de Deus fez algumas de suas aparições mais espetaculares, ante o olhar embasbacado de três infantes do pastoreio. Caso perdido, lá estive na exclusiva condição de jornalista.
Com risco de estar adicionando mais uma nódoa à minha já encardida alma, devo confessar que não gostei de Fátima, e chego a me perguntar, com todo respeito, o que teria levado Nossa Senhora a pousar num município tão destituído de encantos naturais, se à disposição está, não longe dali, a encantadora Leiria.
Das conversas que tive com gajos locais, ficou-me a impressão de que em Fátima tudo é difícil – até mesmo pecar. Não que o repórter estivesse interessado nisso, mas o fato é que não há na cidade um único motel, um solitário inferninho, muito menos uma sex shop. O pecado mais à mão, me pareceu, é o da gula, sendo recomendado ir praticá-lo no restaurante Tia Alice.
Depois de contemplar o espetáculo de romeiros a se arrastar de joelhos rumo à basílica (a maioria deles, ninguém é de ferro, usando joelheiras), fui visitar a loja onde, entre artigos religiosos (ou nem tanto, caso das joelheiras), é possível comprar ex-votos, para pagar promessa ou agradecer graça alcançada.
Moldadas em cera, encontram-se à venda, num setor que poderia chamar-se “Pedaços de Mim”, as mais diversas partes do corpo humano, com a exceção que se imagina. Lembro-me de ter visto fígados, cérebros, pulmões, rins, pâncreas, novelos de intestinos, toda sorte, enfim, de miúdos humanos, organizados nas estantes com o critério de um bom açougue.
– Quanto vale o seio? – ouvi um moço perguntar. – Três euros – informou o vendedor, acrescentando que sai mais em conta se o freguês leva o par. – Mas a doença foi num só... – argumentou o romeiro.
Quanto às velas votivas, é praxe escolhê-las conforme a estatura do fiel, e ao saber disso não pude deixar de pensar na economia que faria em Fátima o cantor Nelson Ned, e no rombo que a fé abriria no bolso do Oscar do Basquete.
É praxe, também, atirar as velas, assim como os ex-votos, numa fornalha de pedra a meia altura, e como o tempo todo há quem o faça, o espetáculo chega a sugerir uma daquelas batalhas medievais de filme, com nuvens de lanças voadoras a toldar o céu.
Para onde vai a cera derretida?, quis saber o abelhudo repórter brasileiro. Nós a reutilizamos, segredou um frade. Muito razoável. Se às almas se dá uma segunda chance, mediante escala no Purgatório, por que não se permitiria à cera ressurgir, ainda que mais escura, e por isso mais barata, sob a forma de ex-ex-votos? * Minha antipatia por Fátima não é extensiva a outras localidades portuguesas por onde também peregrinei, todas elas, sem exceção, muito dignas de visitar, ainda que não seja para lavar a alma.
É o caso, a meia hora dali, da já citada Leiria, onde, ao contrário de Fátima, tentações e prazeres se oferecem ao forasteiro. Tudo se pode encarar ali, sem esquecer o Tromba Rija, assustadora denominação de um ótimo restaurante. Após tanta reza, o corpo anseia por algum pecado – sem o qual, não custa lembrar, a virtude não existiria.
No mesmo capítulo culinário, hoje infelizmente apenas como referência histórica, vale conhecer, em Alcobaça, o Mosteiro de Santa Maria, cuja cozinha, no século 18, engordava 999 monges ali reclusos.
Os santos e roliços servos de Deus comunicavam-se por mímica, só abrindo a boca para comer – o que faziam em quantidades alarmantes. Assavam-se seis ou sete bois ao mesmo tempo, e a louça era lavada num braço do rio Alcoa que, com peixe e tudo, atravessava a monumental cozinha.
Na litorânea Nazaré, deslumbrante polo de veraneio, meca dos surfistas mais audaciosos, os moradores não escondem um ressentimento municipal: com suas retumbantes aparições, a Virgem de Fátima teria ofuscado a mais discreta Nossa Senhora de Nazaré. Discreta, porém operosa: padroeira de Portugal, a madona tem no currículo pelo menos um prodígio.
Conta-se que no ano de 1182 o guerreiro nobre d. Fernando Gonçalves Churrichão, celebrizado como d. Fuas Roupinho, com direito a citação nos Lusíadas, perseguia um veado, desses providos de galhada, o qual, acuado, acabou por despencar de um penhasco sobre o mar.
No galope em que vinha, o cavalo de d. Fuas teria caído também, não fora a mão providencial da Senhora de Nazaré, puxando as rédeas à beira do precipício. Oito séculos depois, há quem jure ver, na ponta da rocha, marcas da milagrosa brecada das ferraduras.
Aos desavisados não custa esclarecer que nada tem a ver com o nome de d. Fuas Roupinho a repolhuda indumentária das mulheres de Nazaré, dadas a usar, superpostas qual camadas de cebola, sete saias de cores vivas, a serem despidas uma a uma – para frustração, pode-se imaginar, de marido afoito que, tendo ido com excessiva sede ao pote, corre o risco de acabar sem ter chegado ao fim.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.