Jayme Ovalle chegaria aos 125 anos neste 5 de agosto – e a data, mesmo não sendo redonda, me devolve ao dia em que botei na cabeça a ideia, não muito sensata, de contar a vida deste singular artista brasileiro. A memória me leva ainda mais fundo, ao momento em que pela primeira vez topei com uma referência a ele, na epígrafe de um conto de Ivan Angelo: “O suicídio é um ato de publicidade: a publicidade do desespero”.
Fisgado pela frase, lá fui eu, nos meus 18 anos, em busca de saber quem era o autor do achado. Nem notícia dele nas bibliotecas que eu tinha à mão. No máximo, aqui e ali, referências esquálidas ao compositor de Azulão, nascido em Belém e falecido aos 61 anos no Rio de Janeiro, onde viveu a partir da adolescência.
Só bem mais tarde vim a saber que, com sua própria mão, Jayme Ovalle jamais escreveu a frase que me impressionara, na realidade apanhada por Vinicius de Moraes numa entrevista, nem qualquer outra das que vi citadas por aí, quase sempre cintilantes. Sua viúva, a escritora americana Virginia Peckham (depois Virginia de Araújo, de um segundo casamento), me contou que escrever, no duro, Ovalle só muito raramente escrevia, e que para comprovar a inapetência bastava ver sua caligrafia garranchosa. Suas pérolas só sobreviveram quando houve, ali ao lado, alguém – os amigos Vinicius, Manuel Bandeira, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos – para impedir que elas escoassem pelo ralo da conversação.
Assim como a sentença sobre o suicídio, não teria chegado a nós a Nova Gnomonia, se Bandeira, ali por 1930, não tivesse passado pelo café onde Ovalle papeava com o poeta Augusto Frederico Schmidt, e recolhido essa engenhosa classificação da humanidade em cinco categorias – os dantas, os mozarlescos, os kernianos, os onésimos e o Exército do Pará –, com o cuidado de batizá-la e consolidar em crônica.
Como disse Nelson Rodrigues a propósito de Otto Lara Resende, teria sido necessário pôr alguém de gravador em punho nas pegadas de Ovalle, para registrar os achados verbais desse artista perdulário, e com eles abastecer as prateleiras de uma “Loja de Frases”.
Em 1990, decidi não dar ouvidos a Rubem Braga – “Ovalle”, resmungou ele, “só tem quatro histórias, sendo que três o Fernando Sabino já contou e a quarta é mentira” –, e fui atrás de uma bolsa que bancasse a feitura da biografia. Otto e Fernando tiveram a generosidade de me avalizar junto à Fundação Vitae. Eu estava por demais fiado numa ajuda do Sabino – até então, quem mais havia escrito sobre Ovalle, durante dois anos companheiro seu em muito papo vadio em Nova York. Falou dele em crônicas, além de o transformar em personagem de romance – o amalucado, fascinante, ovalliano Velho Germano, de O Encontro Marcado.
Quando saiu a bolsa, quase caí do cavalo, pois Fernando, alegando ser Ovalle assunto seu, trancou boca e arquivos. Por pouco não desisti do projeto que, mil vezes abandonado e retomado, culminaria, em 2008, na publicação de O Santo Sujo – A Vida de Jayme Ovalle. A recusa de Sabino, felizmente, acabou tendo para mim efeito benfazejo, pois me forçou ao desafio de garimpar em veios não previstos.
Levei outro susto ao descobrir que ao morrer, em setembro de 1955, Ovalle nada deixou que lembrasse um mitológico baú com originais que mais de um amigo jurara ter visto sob a cama dele, num hotel nova-iorquino. Em que encrenca eu me metera, ao me propor biografar um autor sem obra! No minuto seguinte, porém, recobrei o ânimo, agora multiplicado: seria, e foi, ainda mais estimulante escrever sobre alguém que, embora sem obra, influenciou autores graúdos – entre eles, Vinicius, que certa vez declarou, hiperbólico, ser Jayme Ovalle o homem mais próximo da genialidade que ele conhecera. Aliás, conta Otto Lara Resende, foi bebido em Ovalle o sestro que tinha o Poetinha de espalhar-se em diminutivos.
Praticamente incapaz de criar, em virtude de uma formação deficiente, o autor de Azulão, Modinha e Berimbau, em parceria com Bandeira, e de mais 30 músicas hoje praticamente esquecidas, Ovalle ficaria sendo como um sol refletido na obra de artistas mais bem equipados para a criação. Dele não vinham mais do que lampejos – dos quais a melhor ilustração seria Azulão, sua obra-prima, cantada e gravada ao redor do mundo, com apenas 16 compassos.
Por se sentir depositário de coisas importantes que lhe cabia converter em arte, Ovalle, como poeta, sonhou com audiências vastíssimas, e para ecoar mais amplamente decidiu escrever na mais universal das línguas – embora jamais tenha dominado o inglês, mesmo depois de viverquatro anos em Londres e outros tantos em Nova York
Afortunadamente, numa cidade como na outra, a esse homem de estranha beleza física não faltaram moças prestimosas – uma das quais, 31 anos mais jovem, viria a ser sua esposa –, e a algumas pediu ajuda para destilar em inglês uns turbilhões poéticos que nem sequer em português ele dava conta de formalizar.
Na volta de Londres, em 1937, trouxe as 99 laudas datilografadas de The Foolish Bird, poema que não animou Bandeira o bastante para que se dispusesse a ajudar o amigo na publicação do livro, até hoje engavetado. Limitou-se a passar para o português três pequenos poemas que “o Místico” – assim se referia ele a Jayme Ovalle – lhe mandara de Londres.
Virginia Peckham, mãe de sua filha única, Mariana, bem que pelejou para captar e pôr em língua inglesa os emaranhados eflúvios poéticos do marido. A certa altura, já próximo do fim, ele próprio entregou os pontos, e comunicou à mulher que a partir de então seria tarefa dela tocar a batalha, não mais como ghost writer, mas como autora. Só pediu que não tocasse já, pois isso poderia matá-lo.
Numa das ocasiões em que estive com Virginia, em Los Gatos, Califórnia, dez anos antes de sua morte, em 2005, ela me presenteou com uma edição doméstica de Brazil Genesys, que concluiu em 1992. “Este é o poema que Jayme Ovalle poderia ter escrito”, lê-se numa nota, “se ele fosse capaz de escrever, no seu português nativo ou em seu inglês de empréstimo”. Pena que não possa ainda ser de todos o livro com que o Místico tanto sonhou.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.