Em Lições não há espaço para o sonho: apenas para a lembrança. Entre o passado e o presente, há um piano – símbolo dos êxitos custosos e fracassos derradeiros de Roland, personagem do novo romance de Ian McEwan. A sinfonia é composta por acordes que se contradizem em proporção e importância: a crise dos mísseis de Cuba, o desastre de Chernobyl e a queda do muro de Berlim são dispostos ao lado de um caso amoroso e um casamento arruinado. Acontecimentos de relevância histórica são apresentados de maneira inesperada pelas páginas do romance: o monumental não somente é equiparado ao ordinário, como também é retratado como seu catalisador.
McEwan cria um protagonista cuja subjetividade é composta por um material poroso e de permeabilidade incalculável: ele é atravessado e trespassado por inúmeras influências externas, construindo e corrompendo seu caráter. É a iminência de uma Terceira Guerra Mundial que conduz Roland, em plena puberdade e ansiando por experiências inéditas, para a casa de sua professora de piano. Trata-se de um momento decisivo: as consequências dessa escolha determinam o resto de sua trajetória.
O prodígio musical se torna um pianista frustrado em salões de hotel e um poeta de versos que não vão além dos cartões de aniversário e de óbito. A iniciação sexual precipitada e o relacionamento impróprio condenam os laços que tenta cultivar com as mulheres em sua vida. Seus grandes dons se desvanecem e, impotente, Roland assiste ao espetáculo: o fiasco da própria existência. Exerce pouca influência na vida do filho que cria sozinho, mal interferindo em suas decisões, e é condenado a testemunhar o sucesso da esposa que o abandonou – uma carreira que só avança quando o deixa para trás.
Por meio da figura de Alissa, McEwan volta a explorar o ofício do escritor. Se em Reparação, obra publicada em 2001, o dilema que atravessa Briony é a posição do romancista enquanto Deus, Lições questiona a qualidade de uma obra de arte e se ela é tornada possível apenas pela crueldade. Mais do que isso, é estabelecido um debate acerca da dialética entre ficção e realidade – conceitos que se alimentam e, concomitantemente, só existem na presença um do outro. Roland eleva essa ideia à máxima potência, propondo a existência de uma história quimérica dos séculos 20 e 21: com exatamente cem capítulos, seria capaz de abranger todos os eventos pregressos e também aqueles ainda inacabados – além de responder dilemas decisivos para o destino humano.
Como autores de suas próprias histórias, os personagens disputam versões da realidade. Onde Roland enxerga a manipulação violenta, a professora de piano afirma uma obsessão irrefreável. O que Lawrence percebe como abandono, significa a única chance de triunfo para Alissa. Neste ponto, adentramos o território das lembranças – e nada é mais subjetivo do que a matéria da qual as memórias são feitas.
Ao escolher lidar com memórias, Ian McEwan se aventura por um terreno ainda mais incerto: a História – não apenas a trajetória de um indivíduo, mas da humanidade. Trata-se, indubitavelmente, de uma corda bamba na qual se apoiar – principalmente com um protagonista como Roland, cuja inconstância produz uma subjetividade errática. A impermanência de suas convicções é resultado dos eventos históricos aos quais é exposto e se submete: a caminhada ao redor dos destroços do muro de Berlim, o pânico causado pelo desastre de Chernobyl, a filiação e a subsequente rejeição ao Partido Trabalhista, a vivência do lockdown e da pandemia de COVID-19, entre diversos outros. Neste romance, há um personagem que atravessa o tempo e comprova a impossibilidade de permanência quando se vive a História.
Um romance como Lições prova que a eternidade só é possível em uma circunstância: a da obra de arte. Este é um exemplo de como a literatura preserva a existência humana e reflete o espírito de uma época – ainda que sob as regras da ficção. Graças à técnica magistral, as páginas abrigam passado e presente, além de oferecer um vislumbre do futuro – através de gerações posteriores que, com sorte, experimentarão a história do século 21 com a qual Roland só pode sonhar. As palavras conservam as reminiscências da vida – assim como a obra de Ian McEwan sobreviverá por meio da nossa leitura.
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