Véspera do carnaval pegamos a estrada, rumo a Minas Gerais, fugindo dos blocos que prometiam infernizar as ruas da Vila Madalena. Decidimos ir pela Fernão Dias para evitar a Dutra, ocupada por aqueles que buscam as praias do litoral norte. Demos sorte, até o momento em que enfrentamos a primeira longuíssima paralisação. A internet não explicava. Sempre dizem acidente, excesso de carros, tantos minutos parados, etc. Passado bom tempo, descobrimos duas carretas monumentais, ocupando o lado direito da rodovia, deixando escassa passagem para as filas de autos. As carretas levavam gigantescas hélices dessas que alimentam energia eólica. Quem é o gênio que libera tal transporte na véspera de um feriado?
Ultrapassamos felizes, mas logo à frente, de novo, a marcha das lesmas. Outra paralisação, milímetros andados, até chegarmos ao acidente. Imensa carreta semicaída mostrava a cabine destroçada. Ninguém teria sobrevivido. Policiais acenavam para acelerar. Como? Havia os que furavam pelo acostamento e os que desciam, celular na mão, a gravar para alguma tevê. Havia também quem descia e ia olhar, procurando as vítimas destroçadas. Tudo como se fosse um piquenique, um feriado, um camping.
Nesse momento, lembrei-me de uma frase de Otto Lara Resende. No final dos anos 1970, o Unibanco patrocinou um concurso nacional de contos com grana altíssima para o vencedor. Milhares concorreram. As primeiras reuniões do júri foram no Rio de Janeiro. No júri havia Otto, Lygia Fagundes Telles, Marcílio Moreira, Antonio Houaiss e outros pesos pesados. Tantos eram os concorrentes que cada jurado recebeu caixas com centenas de trabalhos para serem lidos. Os encontros eram no Rio de Janeiro. Tivemos até salário mensal.
Na terceira reunião, uma tarde, Lygia fez uma intervenção. “Conseguem me explicar? Começo a ler um conto, acho bom, separo para outra leitura. Há contos que descarto no terceiro parágrafo. No entanto, há contos que leio, fico espantada, paralisada com a mediocridade, o besteirol, a falta de senso, o horror, o nenhum sentido. Lixo do lixo. Mas leio inteirinho. De cabo a rabo. Alguém me explica? Chego a reler, perplexa comigo.” Todos quietos, nos entreolhamos. Então, Otto Lara Resende exclamou: “É fácil, Lygia. É o invencível, inabalável fascínio humano pelo tenebroso”. Hoje, sei por que acidentes, crimes, discursos e entrevistas de políticos me fascinam. É o tenebroso.
