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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião | As 951 páginas de ‘Um Defeito de Cor’ e os encontros inesperados

Nestes 24 anos, minha casa se encheu de livros, esvaziou, encheu de novo. A obra desapareceu, mas não uma frase que enquadrei

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Atualização:

Súbito, dois reencontros de uma vida. Ana Maria Gonçalves primeiro. Viemos juntos em um voo do Nordeste para São Paulo, início do ano 2000. Não me lembro de qual cidade, tantas eram as viagens. Ana Maria tinha acabado de lançar um romance que ferveu, Um Defeito de Cor. Provocou as mesmas reações que vemos hoje diante dos livros que falam da luta racial, de Ludmilla, Jeferson Tenório e outros. Defeito de cor é ser negro. O termo vem do Brasil colônia. Livro de uma publicitária, mulher informada, viajada, ativa. Um clássico, ainda que recente. Ana comove e indigna ao contar a história dos 80 anos de vida de Kehinda, menina negra. Saga espantosa.

Nestes 24 anos, minha casa se encheu de livros, esvaziou, encheu de novo. Um Defeito de Cor desapareceu, mas não uma frase que enquadrei. “Quando você segue as pegadas dos mais velhos, aprende a caminhar com eles.” Quadrinho que foi para a Biblioteca Rural de Cangalha, recém-criada no sul de Minas Gerais.

Capa do livro 'Um Defeito de Cor', de Ana Maria Gonçalves Foto: Editora Record

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Há duas semanas falei na Flig, Festa Literária de Guaratinguetá, comandada por Wellington Vilanova, e percorri os estandes. Noite de sábado, gostei de ver o tanto de crianças com os pais. Eis que um senhor apanhou um grosso volume, folheou, me reconheceu e disse: “Há anos procuro este romance”. Era Um Defeito de Cor. Antes que eu respondesse, ele comprou dois e me deu um. Reencontrei o livro que viera comigo na viagem, ao lado da autora. E que terminei não lendo. Nada menos de 951 páginas de nos virar do avesso. Está na hora de pagar a dívida com Ana. E já me apropriei de outra frase dela: “Uma chama não perde nada ao acender outra chama”. Millôr Fernandes, que fez a orelha, garantiu: “Este livro não tem hausto, parada para respirar”. Assim, terei de me manter vivo por 951 páginas.

Ao voltar, dando a arrumada mensal na mesa, encontrei um recente Caderno 2 e dei com Chico Santa Rita. Jornalista, amigo de longo período, chegadíssimo, passávamos finais de semana em minha chácara em Sarapuí, interior do Estado. Depois ele virou marqueteiro político, ganhou fama, dinheiro, mudou-se, desapareceu. Agora, passadas décadas, entendi o sumiço. Suzana Barelli, falando sobre as viúvas dos bons vinhos, Clicquot, Pommery, etc., contou que Chico e sua mulher Fernanda tinham uma vinícola em Portugal, produzindo o Qualt, um tinto. Porém, ano passado, Chico morreu. Ela continua a produzir e assim Chico, a cada garrafa, virá a mim aos goles, tanto conversávamos. Memórias não morrem se provocadas por um vinho.

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão

É escritor, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de 'Zero' e 'Não Verás País Nenhum'

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