Raquel Welch se foi. A mulher mais sexy do mundo era mortal, porque imortalidade não existe. Existisse, seria insuportável. O que teria sido de mim sem aquela atriz? Teria feito que carreira? Thomaz Souto Correa era diretor da Claudia em 1966 e me chamou: “Quer deixar o jornal diário e vir para uma revista mensal?”. Fiquei siderado. Claudia era a revista feminina mais importante do Brasil. Moderna, trazia Carmen (com N) da Silva, que hoje estaria à frente do #MeToo. Ela desafiava convenções e a censura da ditadura falando de sexo antes do casamento, divórcio, drogas, virgindade, anticoncepcionais, mercado de trabalho para a mulher. Precursora, acenou para o futuro das mulheres em época careta e conservadora. Mudou a história de futuras gerações. Ajudou a moldar minha cabeça nas conversas na redação e nos almoços no Hotel Cambridge, na Avenida Nove de Julho, ao lado de Glória Kalil, Isabel Montero, Guaracy Mirgalovska, Thomaz Souto Corrêa, Edith Eisler, Lu Rodrigues, Attilio Baschera, Walther Negrão. Trabalhar naquela revista mudou minha carreira dali em diante. O jornal Última Hora, onde me formei, foi comprado por uma empresa que o massacrou. Estivesse lá, o que teria feito depois?
Nervoso, fui para o teste. Na sala de Thomaz, vi na parede um quadrinho do Peanuts emoldurado, com a frase “A vida é cheia de rudes despertares”. Thomaz: “Sei que você ama, entende de cinema, de estrelas de todos os tempos. Faça um texto fluente, sensual, sobre essa mulher”.
O filme era Mil Séculos Antes de Cristo e na foto, em lugar de Cristo, havia Raquel Welch de biquíni, sex symbol. A expressão hoje está banida, mas na época atraía. Raquel era morena, rosto entre ingênuo e malicioso, sensual. Tinha de me sair bem. Recorri aos telegramas internacionais, fui buscar minhas revistas sobre cinema, meus livros sobre Hollywood. O prazo não era o de jornal, tinha dias para isso.
Essa foi a primeira liberdade que aprendi com a revista, nada de pressa, do escreva agora, para daqui a dez minutos. Redigi, entre nervoso e ansioso (e se Thomaz não gostar?), “enchi linguiça” (como se dizia) com historietas. Thomaz aprovou, fiquei anos na redação. Em 1967, fizemos uma Claudia em Hollywood, tentei entrevistar Raquel, não consegui, filmava em alguma parte. Na minha cabeça, eu iria dizer: “Muito obrigado por existir, você deu impulso à minha vida”. Ela nada entenderia, me acharia esquisito. E daí? Até hoje muita gente acha. O que penso agora é: onde estão e quem são os dois filhos dela? O que foi a vida deles tendo a mãe mais sexy do cinema? Uma semana atrás, escrevi esta crônica e fui almoçar com Glória e Thomaz. Raquel tinha morrido no dia anterior, aos 82 anos.
* É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ZERO’ E ‘NÃO VERÁS PAÍS NENHUM
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