Quando vim para este apartamento em Pinheiros, anos 90, aqui chegavam diariamente cerca de 100 jornais e dezenas de revistas mensais e semanais. De manhã, a portaria virava banca. Seu Zé, zelador, deixava em nossas portas o que assinávamos. O café da manhã era com a leitura, íamos para o trabalho informados.
Naquela década, o digital começou a chegar, as pessoas foram se bandeando, passando para o computador, os celulares, os telejornais, as bancas começaram a fechar. Hoje, raras oferecem “informações” e resistem; o resto vende brinquedos, refrigerantes. Lembrei-me do comercial criado por Neil Ferreira, o clássico A Morte dos Orelhões. Fim dos telefones de rua.
A banca da Praça Benedito Calixto, na qual me socorro, é a ultima próxima de mim a “vender” informação. De jornais, no prédio, restaram três assinantes. Franco, Iara e eu. Os jornais chegam cedo, são jogados por cima do portão.
Mas o assunto é outro. Descobri, dia desses, que Franco e Ana, aqui chegados há pouco, assinavam o Estadão e eram meus leitores de longa data. Certa manhã, nos encontramos na portaria. Ele fez uma queixa, me colocou em alerta: “O senhor tem falado muito de seus companheiros, escritores. Quando voltará a contar histórias dos personagens locais, da padaria, do povo, do bairro, dos pedintes, há décadas os mesmos? Histórias que mostram o cotidiano da cidade?”.
Tinha coincidido de eu ter falado de feiras literárias importantes, mas Franco tocou no transcendental. A crônica vem mudando. Aquele estilo poético/romântico/tradicional de Rubem Braga, Fernando Sabino, Raquel de Queiroz (a quem substituí no Estadão), Antonio Maria, Otto Lara, Paulo Mendes Campos, Luis Martins se alterou. Grandes cronistas hoje, com razão, estão voltados aos temas sociológicos, históricos do Brasil, vivemos momentos de ansiedade, preconceitos, polarização, machismo, feminismo. O que nos fere. Mas será que nosso cotidiano não está repleto do microepisódios dramáticos, felizes, que nos trazem um sopro? E que revelam a angustia do que vivemos?
Conto um, rápido, nada banal. Semanas atrás, meu leitor Franco desceu com a esposa, Ana, para entrar em um Uber que o levaria ao Pronto Atendimento. Não se sentia bem. Tinha acabado de pegar o jornal, sentou-se em um sofá, Ana foi verificar se o carro tinha chegado. Ao voltar, junto com o porteiro Ataíde, encontrou o marido caído no sofá. Morte súbita. Perdi o amigo, o leitor, meu “ombudsman”. Perdeu o leitor. Quantas crônicas uma morte súbita não leva consigo?
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