Zé Celso foi o “fogo” no teatro. E morreu devorado pelo fogo. Das raras pessoas que conseguiram dar sentido à própria vida. Teatro ele comeu, bebeu, foi feliz, realizou dormiu, namorou, sofreu. Criança, saíamos da escola em Araraquara, íamos à casa dele na Rua Sete – a casa continua lá, deveria ter uma placa na fachada – e eu assistia o teatrinho que ele fazia com marionetes em caixas de papelão. A mensagem, hoje de manhã, do irmão dele, João Batista, foi curta: “Infelizmente o Zé não aguentou”.
Terminou hoje uma amizade de oitenta anos, a contar do tempo em que estudamos juntos no primário (hoje fundamental) no Colégio Progresso de Araraquara. Ali ele me dizia: “Se você ganhar a medalha semanal de bom comportamento, nunca mais falo com você”. Já era o rebelde. Ganhei uma vez, a amizade continuou. Nas décadas de 40 e 50, frequentamos o Instituto de Educação Bento de Abreu.
Viemos para São Paulo ao mesmo tempo, ele entrou para a São Francisco, comecei no jornalismo. Moramos no mesmo quarto da pensão de dona Nina, na Alameda Santos 93, vi o Oficina nascer na Rua Santo Antônio. A carreira e importância do Zé estão sendo contadas desde ontem, a todo momento. Perdoem este texto pessoal, não tem outro jeito.
Atravessamos décadas, cada um em sua escolha, e nunca nos separamos. Se casamento é uma união deste gênero, a nossa amizade foi um. Duas vezes estivemos no palco, na cidade onde nascemos. Nossas mães eram piedosas, católicas. Minha mãe perturbada pelo meu primeiro livro que continha palavrões, a mãe do Zé, dona Lina, com as posições do filho em política, sexualidade, religião. Fui um dos que defenderam Zé como testemunha quando o vigário da Matriz da cidade processou-o. Ao meu lado, junto ao juiz, estava Octavio Frias, da Folha. Ríamos ante tanta insensatez.
Da geração que mudou os rumos do teatro brasileiro após o TBC resta Amir Haddad. Augusto Boal, Antônio Abujamra, Antunes Filho, Flávio Rangel, partiram. Os especialistas em teatro vão contar a trajetória do Oficina, nascido em uma sala do Bixiga, onde aos sábados se liam peças teatrais, se discutia Stanislavski, se ensaiava o Teatro a Domicilio e se “brincava” de mimica. Zé escrevia, tocava piano, cantava, dirigia, interpretava, fez cinema, falava, falava, falava. O resto se sabe, o vento forte, a carreira veloz, Rei da Vela, Os Pequenos Burgueses, Galileu Galilei, Gracias Señor, Os Sertões, a ditadura, a prisão, a tortura, a violência, 68 em Paris, a revolta dos Cravos em Portuga. Zé sempre ali.
Ano passado, quando Araraquara realizou sua primeira Festa literária, a FLI-SOL, nos colocaram no palco, juntos.. Entramos cantando junto com estudantes de teatro que foram aos bastidores nos buscar. Quinhentas pessoas na plateia. Mal podíamos saber que era a despedida
E falamos, falamos, Zé confessando que depois de ser de todos os gêneros, agora era indígena. Ele também estava lá pela presença da Davi Kopenawa na mesa sobre “Literatura indígena entre o céu e a terra.” Kopenawa estava nos projetos dele. Zé costumava se vestir de branco. Ainda há pouco, quando indagado sobre a idade respondeu: “Enquanto penso, faço, sonho, estou vivo.” Para compensar esta imensa perda, São Paulo deve transformar o terreno pelo qual ele lutou meio século em um parque, área verde num bairro histórico, junto a obra prima de Lina Bo Bardi, que é o teatro.”
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