Quando o escritor Italo Calvino, cujo centenário de nascimento se comemora este ano, morreu repentinamente com 62 anos (hemorragia cerebral), em 1985, a consternação foi geral. Conhecido internacionalmente como exímio ensaísta e ficcionista – na época ele e Umberto Eco eram os mais importantes intelectuais da Itália –, ele estava, naquele momento, terminando de redigir as famosas Seis Propostas para o Próximo Milênio, a serem apresentadas à Universidade Harvard, dentro do ciclo de conferências (as Norton Lectures) que, desde 1926, haviam contado com figuras como Igor Stravinski, T.S. Eliot, Jorge Luis Borges, Northrop Frye, Octavio Paz, entre outros. Logo, “ao nortear não apenas a atividade dos escritores, mas cada um dos gestos de nossa existência” – conforme diz o tradutor brasileiro Ivo Barroso –, essas conferências se tornaram coqueluche nas universidades do mundo inteiro.
Na verdade, Calvino só chegou a terminar cinco das conferências às quais foi dado o nome de Lições Americanas. Do que elas tratam? Assim ele as organizou: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade (Consistência). Cada uma dessas conferências, ao focalizar o essencial da respectiva denominação, vai tratar de uma série de outros textos, adquirindo as características desses títulos magistrais.
Para os textos literários e os não literários – e aqui vem o segredo do conferencista –, “a análise crítica não será aquela que aponta para ‘fora’, mas – explorando o ‘dentro’ do texto – conseguirá abrir golpes de vista inesperados sobre o fora”. Essa, por sinal, é também a posição do nosso Antonio Candido, que de sociólogo se fez crítico literário, como Calvino, que de romancista (mais de 20 romances publicados) se tornou ensaísta. “Em Calvino, o ambíguo é uma constante de seu empenho de artista e desenvolve-se em três tempos, em suas obras básicas”, diz Paolo Angeleri.
O primeiro é o Realístico: inicia-se com o conto A Entrada na Guerra (1954) e continua com A Trilha dos Ninhos de Aranha (1947), Por Último Vem o Corvo (1949) e as três fábulas de Os Nossos Antepassados. Já o segundo tempo, o descritivo, traz A Especulação Imobiliária (1957), A Nuvem de Smog (1958) e O Dia de Um Escrutinador (1963). O terceiro, por sua vez, traz o fantástico com As Cosmicômicas (1965), Ti Com Zero (1967) O Castelo dos Destinos Cruzados (1973), As Cidades Invisíveis (1972) – o livro favorito do escritor – e Se um Viajante Numa Noite de Inverno (1979), ligado ao movimento Oulipo (Ouvroir de Litterature Potencielle), de Raymond Queneau, que Angeleri prefaciou na versão portuguesa. Quanto às obras ensaísticas de Calvino, devem ser considerados, além das Seis Lições, o importantíssimo Caso Encerrado, Coleção de Areia e Por Que Ler os Clássicos.
Hoje em dia, qualquer ramo da ciência mostra que o mundo se segura em entidades como DNA, quarks, software. O que será da literatura?
Então, voltando às características propostas para o nosso milênio, em primeiro lugar está a leveza. “É preciso ser leve como o pássaro, não como a pluma”, diz Paul Valéry, um dos autores mais citados por Calvino. “O fato de que, nos meus 40 anos de ficção, eu tenha tentado tirar o peso das figuras humanas, dos corpos celestes, das cidades, das narrativas, não significa, porém, que não tenha respeito pelo peso”, alerta Calvino. “Mas se, hoje em dia, qualquer ramo da ciência mostra que o mundo se segura em entidades sutis: os neurônios, o DNA, os quarks, o software, a informática, o que dizer da literatura?”, questiona o escritor.
A leveza tem ao menos três acepções. Uma, que vem exemplificada, entre outros, por Emily Dickinson, outra por Boccaccio, Cavalcanti, Cervantes, Shakespeare. Já a terceira por um quase desconhecido escritor seiscentista: Cyrano de Bergerac. Muitos fios Calvino trança em seu discurso sobre a leveza: a Ars Magna de Lull, a Cabala dos rabinos espanhóis, a de Pico della Mirandola, Galileu, o alfabeto como modelo de cada combinatória de unidades mínimas, Leibniz.
“Qualquer objeto numa narração é um campo magnético, quase um objeto mágico, particularmente nas narrativas orais em que a economia expressiva é uma batalha contra o tempo e os detalhes que não devem ser deixados de lado”, explica Calvino. Lá está Sheherazade com a continuidade e descontinuidade do tempo, lá está o cavalo como emblema da velocidade física, mas também mental, que não apenas marca a história da literatura, mas prenuncia a problemática própria a nosso horizonte tecnológico.
Thomas de Quincey (1785-1859), que definiu a rapidez como sendo a relação entre velocidade física e velocidade mental, exemplifica em uma das histórias mais repetidas em quase todos os filmes de suspense: ele, passageiro, a bordo de um carro postal (The English Mail-Coach) em que os cavalos se desgovernam, o cocheiro adormece e um outro carro que vem vindo no sentido oposto iria bater, não fora a rapidez do jovem condutor – rapidez essa física e mental.
“Discorrer é como correr”, diz Galileu, e esta afirmação é como seu estilo e método de pensar: a rapidez, a agilidade de raciocínio, a economia dos argumentos, mas também a fantasia dos exemplos. Poder-se-ia ainda falar, com Calvino, de Laurence Sterne (Tristram Shandy), de Giacomo Leopardi (Opúsculos Morais), dos poetas Walt Whitman e William Carlos Williams, de Jorge Luis Borges ou voltar à mitologia grega com Hermes (sintonia) e Vulcão (focalidade). Mas vamos falar da exatidão e da visibilidade, que em Calvino estão muito próximas, e cuja ordem vamos inverter aqui.
Isso, por um curioso aspecto da sua personalidade, é resultado do cuidado da mãe de Italo Calvino. Desde pequenino, ela havia presenteado o filhinho com uma coleção de uma separata do Corriere della Sera, chamada Corriere dei Piccoli, em que toda semana vinham reproduzidos os mais famosos quadrinhos americanos (O Gato Felix, Os Sobrinhos do Capitão, Happy Hooligan, Jiggs & Maggie, etc.). O que fazia o iletrado Italo? Ia enchendo o espaço das bolhas, dos dizeres e dos balões de fala com as histórias imaginárias que as figuras lhe sugeriam. O visível era o fundamental para ele, o estímulo para sua imaginação. Viriam, mais tarde, Dante, Tomás de Aquino, Inácio de Loyola, Jean Starobinski, Freud, Jung, Balzac e... a exatidão.
“Entre os livros científicos em que enfio meu nariz à procura de estímulos para a imaginação”, escreve Calvino, “ocorreu-me ler (a respeito de um debate entre Jean Piaget e Noam Chomsky) que os modelos de formação dos seres viventes são, de um lado, o cristal (imagem da invariância e da regularidade de certas estruturas) e, do outro, a chama (imagem da constância de uma forma global exterior, apesar da incessante agitação interna)”.
Calvino, que sempre gostou de emblemas, desenvolve como escritor a imagem do cristal, da chama, da cidade e chega às seguintes constatações, quanto ao caminho da obtenção da exatidão: por um lado, há redução dos acontecimentos contingentes a esquemas abstratos que permitam realizar operações e demonstrar teoremas. Por outro, temos a busca por palavras que deem conta da maior precisão possível ao aspecto sensível das coisas. De novo entram, nas explicações de Calvino, cientistas e poetas discutindo o assunto, e com eles chegamos à multiplicidade.
Aqui Calvino recorre a duas obras-primas. A de Carlo Emilio Gadda que em português se chamou Aquela Confusão Louca da Via Merulana, em que o autor vê o mundo como um sistema de sistemas, onde cada sistema condiciona os outros e é por eles condicionado, ele mostra como cada mínimo objeto é centro de relações, numa frenética deformação.
Temos a busca por palavras que deem conta da maior precisão possível ao aspecto sensível das coisas
Outra obra-prima, O Homem Sem Qualidades, do também engenheiro Robert Musil, exprime a tensão entre a exatidão matemática e a aproximação dos eventos humanos por meio de uma escritura oposta à de Gadda: controlada e fluente. Depois de inúmeras voltas, porém, ambos chegam à mesma conclusão: a incapacidade de concluir.
Outros exemplos aparecem com Proust, Goethe, Flaubert, Zola, Thomas Mann, T.S. Eliot, Joyce, Borges e... o Oulipo, em que o mestre Queneau, em sua polêmica com a escrita automática dos surrealistas, adverte bem oportunamente: “Outra ideia falsíssima que corre por aí é a da equivalência que se estabelece entre inspiração, exploração do subconsciente e liberação; entre acaso, automatismo e liberdade. Ora, essa inspiração, que consiste em obedecer cegamente a qualquer impulso, é, na realidade, uma escravidão. O escritor clássico que escreve sua tragédia observando um certo número de regras é mais livre do que o poeta que escreve o que lhe passa pela cabeça e que é escravo de outras regras que ele ignora”.
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