Uma mulher planeja nunca se casar. No entanto, após conhecer um músico, não só rompe com esse plano como também fica gravida. Em Departamento de Especulação, romance de Jenny Offill traduzido por Carol Bensimon, as consequências do desejo são postas à prova numa narrativa claustrofóbica que dialoga com o cânone afetivo de sua autora.
“O tempo é um teatro aqui”, escreve Offill em certo ponto. A frase é um bom resumo do que é este pequeno romance, escolhido como um dos 10 melhores de 2014 pela New York Times Book Review: o casamento e a maternidade no centro do palco, a honestidade brutal da vida a dois na lente de aumento. Com um humor cortante, a escritora estadunidense discorre sobre miudezas enquanto estabelece conexões com nomes como Franz Kafka.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Jenny Offill explica que se trata de um romance filosófico passado num espaço doméstico. Ela também conta do aspecto enigmático de Departamento de Especulação, ilumina sua ligação com a obra de Rachel Cusk e diz quais lições a beleza e o mistério ainda podem ensinar aos leitores.
À primeira vista, Departamento de Especulação parece construído ao redor de um tipo de enigma, com fragmentos que retratam lentamente o declínio de um casamento. Como essa estrutura surgiu, e também a decisão de contar essa história dessa forma?
Meu primeiro romance tem uma construção mais convencional – mas em certo ponto percebi que queria capturar mais da narrativa fragmentária do pensamento, especialmente como a emoção atravessa as pessoas. Eu havia acabado de me tornar mãe, tinha pouquíssimo tempo, então comecei a escrever pequenos fragmentos. Eventualmente, pus todos eles num mesmo arquivo e descobri essas justaposições surpreendentes do mundano e do místico, que achei interessantes, e que me conduziram por esse caminho.
O romance é construído ao redor de muitas citações. Como você pensou esse recurso e os autores e livros que seriam usados?
Sempre anotei passagens de livros que eu gostava na expectativa de que anotá-las me ajudaria a mantê-las na memória. Amo ler não só literatura, mas também ciências naturais e sociais. Quando estou escrevendo um romance, tento perceber quais pequenas obsessões me aparecem (em Departamento de Especulação escrevi bastante sobre viagens espaciais, por exemplo) e as pesquiso. Mas não as coloco no romance direto. Tento esquecê-las e então ver o que flutua de volta durante o longo período de escrita de um livro.
O senso de humor afiado é uma das principais qualidades da protagonista. Como você pensou ela enquanto escrevia, e como se sentiu ao desenvolvê-la ao longo da história, com tantas camadas?
Meus romances favoritos são engraçados e tristes ao mesmo tempo. Não há muitos desse tipo, mas sempre que leio um me sinto animada pela oportunidade de mover de forma tão fluida pra cima e pra baixo de um espectro emocional. Na minha escrita, o humor entra quando quero mudar o tom de um momento, seja pontuando a grandiosidade do narrador ou outro personagem, ou mostrando uma percepção astuta e inesperada do que está acontecendo. Nos meus romances, muito do humor é impassível; não chama atenção para si, mas está lá para quem conseguir pegar o tom.
Os últimos anos jogaram luz sobre as vozes das mulheres e suas versões para temas que pareciam negligenciados pela literatura contemporânea convencional, como maternidade e casamento. Você é parte de uma geração de escritoras, como Rachel Cusk e Ottessa Moshfegh, que trouxe esses temas para o palco principal. Qual é, pra você, a importância de contar essas histórias?
Isso mudou desde que escrevi Departamento de Especulação, mas quando o iniciei, eu sentia que a maneira como a maternidade era retratada na ficção era de certa forma limitada em termos de alcance. Ou era escrita num estilo piadístico, tipo " “olha só que loucura essa minha nova vida”, ou era marcadamente sentimental, debruçada sobre as maravilhas e alegrias de se entregar completamente ao cuidado de crianças pequenas. Havia algumas exceções incríveis, como a autobiografia de Rachel Cusk, A Life’s Work, que é muito feroz e engraçada. Foi um exemplo pra mim de como escrever com complexidade sobre a experiência da maternidade. No meu romance, tentei escrever uma história filosófica que se passasse num espaço doméstico, com uma mulher como personagem principal.
Em uma entrevista, você declarou querer que seu trabalho parecesse, “em última análise, bonito e misterioso, e também que fizesse as pessoas se perguntarem como ele foi feito”. Quais lições a beleza e o mistério ainda podem ensinar aos leitores – e escritores? O que há na construção de um livro que é tão atraente que se torna transparente no texto?
Os trabalhos artísticos que mexem comigo, sejam pinturas, músicas ou livros, parecem ter um tipo de estranheza irredutível. Algo inesperado emergiu, um lampejo de beleza, uma ideia complexa, mas é difícil entender como surgiram. Somente com estudo cuidadoso você começa a vislumbrar quão cuidadosamente modelado é um grande trabalho artístico. Eu estudo escritores e artistas que acho ótimos, sabendo que nunca serei capaz de atingir seu nível, porque acho que mistério e beleza são a sua própria recompensa. Todos nós sentimos isso quando crianças, mas é fácil deixar escapar conforme você envelhece e as demandas do cotidiano se aglomeram. Os melhores artistas nos trazem de volta para aquele tipo de abertura que tínhamos quando éramos crianças.
DEPARTAMENTO DE ESPECULAÇÃO
JENNY OFFILL
TRADUÇÃO DE CAROL BENSIMON
EDITORA TODAVIA
136 PÁGINAS R$ 59,90 OU R$ 42,90 (E-BOOK)
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