É difícil conceituar Por que olhar para os animais?, do escritor e crítico de arte inglês John Berger, publicado pela Fósforo em tradução de Pedro Paulo Pimenta. É um livro composto de pequenos textos escritos em diferentes épocas que inclui ensaios, pequenas narrativas ficcionais, memórias, poesia etc. Afinal, que livro é esse? A interrogação do título parece, portanto, bastante oportuna. Cabe destacar ainda que esse é um livro que incita questionamentos desencadeados pelo olhar, o grande protagonista dessa antologia curiosa. O primeiro texto do livro, Uma História de Ratos, é uma espécie de fábula na qual a personagem, um homem obcecado por ratos, os prende em gaiolas para vê-los partir: “um prisioneiro voando, um prisioneiro realizando seu sonho de liberdade”, enquanto ele segue entre quatro paredes.
Interessante pensar que essa fábula, em vez de dar voz ao animal, retira a voz do humano. Talvez a mudez aproxime homem e animal e permita que eles se “olhem”, uma vez que “dificilmente alguém olha para um rato por tanto tempo quanto aquele homem o olha. Ou vice-versa”. Se a linguagem, afirma Berger, “permite que os homens reconheçam uns aos outros e a si mesmos”, no que diz respeito à relação entre os animais e os homens, é o olhar que permite que os homens reconheçam os segredos da semelhança e dessemelhança entre eles. Ocorre que os animais estão desaparecendo da vida dos homens, “o que resta da vida selvagem está confinado em parques e reservas”, os outros são comidos e “utilizados” por nós, como os animais de estimação (ou domesticados) que são “crias do modo de vida de seus proprietários”: “[...] O animal é esterilizado ou vive em clausura sexual [...]privado do contato com outros animais e nutre-se de alimento processado”. Nessa situação a autonomia entre eles se perde, reproduz-se a relação entre colonizador e colonizado. Em Paris França (1940), Gertrude Stein faz uma comparação muito apropriada sobre essa relação: “os franceses precisam ter como cães de estimação os estrangeiros, que eles modificam e arrumam à sua própria maneira [...]”. Em São as Últimas, poema que compõe o livro, lê-se: “A cada ano partem mais animais./ Restam apenas os de estimação e as carcaças,/ e vivas ou mortas as carcaças,/ são desde o nascimento/ inelutável e invisivelmente/ transformadas em carne,/ ‘Parece-me perfeitamente viável’,/ declarou Bob Rust,/ da Universidade de Iowa,/ ‘projetar um animal/ destinado a ser hambúrguer’/ Em outros lugares/ os animais dos pobres/ morrem com os pobres/ por falta de proteína”.
Nos zoológicos também não existe autonomia na relação entre homens e animais. Confinados, ainda segundo Berger, “esses animais foram integralmente absorvidos na dita ‘minoria silenciosa’”. Em jaulas “os animais é que são sempre os observados. O fato de que eles podem nos observar perdeu importância”. O zoológico é, “na verdade, um monumento à impossibilidade desses encontros”. O fato é que, como afirma Jacques Derrida, “não há o animal no singular genérico, separado do homem por um limite indizível. É preciso considerar que existem ‘viventes’ cuja pluralidade não se deixa reunir em uma figura única de animalidade simplesmente oposta à humanidade”. Berger parece falar no seu livro justamente desses viventes. Em O Pássaro Branco, Berger afirma que “a evolução das formas naturais e a evolução da percepção humana coincidiram para produzir o fenômeno de um reconhecimento potencial: o que é, e o que podemos ver (e, por ver, também sentir), se encontram às vezes num ponto de afirmação. Esse ponto, essa coincidência, tem duas faces: o que foi visto é reconhecido e afirmado, e, ao mesmo tempo, quem vê é afirmado pelo que vê”. O pássaro branco a que ele se refere é uma imitação do pássaro real, é um objeto criado pelo homem em uma “tentativa de traduzir a mensagem recebida de um pássaro real”. Portanto, diz Berger, “a arte se propõe a transformar o reconhecimento potencial em reconhecimento permanente”. Se o pássaro branco de madeira sobrevive ao frio, “lá fora, a 25 graus negativos, os pássaros verdadeiros morrem congelados”.
“Comensais e o que eles comem” é um ensaio sobre o ato de comer, o qual pode até se desviar do tema central do livro, os animais, mas se mantém fiel ao olhar; afinal, para o burguês, diz Berger, o que vale numa refeição é o apelo teatral, que ele digere também com os olhos. Encerra o livro um relato sobre o último encontro do escritor inglês com o jornalista e filósofo Ernst Fisher, nascido na Boêmia. Nele, mais uma vez os animais vêm à tona e o olhar é o protagonista: “Olhei em seus olhos. Estavam pálidos. (Estavam sempre marejados, pelo esforço de enxergar.) Pálidos como uma flor azul [...]”. E na hora da morte seu olhar foi de cético, interrogativo e firme a um “olhar que não viu mais nada”. Já suas mãos, sobre o lençol branco eram “como as patas dianteiras arrancadas de um animal encontrado morto na floresta”. Talvez o livro de Berger também pudesse se chamar Por que é importante olhar?
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