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Julien Gracq e Cormac McCarthy tratam de reclusão em ‘O Passageiro’ e ‘O Litoral de Sirtes’

O francês e o americano tratam da tragédia contemporânea da solidão em duas recentes edições

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Por Martim Vasques da Cunha

O escritor de ficção científica Philip K. Dick costumava dizer uma frase que, com o passar do tempo, se transformou em uma regra absoluta sobre a condição humana: “Viver é ser assombrado”.

É claro que Dick tinha seus problemas pessoais (esquizofrenia, a morte precoce de uma irmã gêmea, uso de alucinógenos) para chegar a essa conclusão, mas dois romances recentemente lançados no Brasil – o clássico O Litoral das Sirtes (1951), do francês Julien Gracq, e o novo livro do americano Cormac McCarthy, O Passageiro (2022) – partem desse princípio para meditar sobre o fato de que a nossa realidade é repleta de espectros que só podem ser articulados no inconsciente da nossa psique – e que, se isso não ocorrer corretamente, seremos atormentados por eles pelo resto das nossas vidas.

O escritor norte-americano Cormac McCarthy, autor de 'O Passageiro  Foto: Alfaguara

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Apesar da diferença de tempo e espaço, McCarthy (nascido em 1933) e Gracq (1910-2007) têm muito em comum. Ambos são reclusos (Cormac dá poucas entrevistas e raramente fala sobre sua obra; Julien recusou o prêmio Goncourt por O Litoral, escreveu um tratado sobre a hipocrisia do mundo literário e permaneceu fiel a um único editor, José Conti, apesar do sucesso que recebeu do público e da crítica); ambos estão preocupados com o substrato dos mitos no nosso cotidiano (McCarthy traduz as tragédias gregas para o mundo da ciência; Gracq é alguém obcecado pelas releituras modernas da lenda do Rei Pescador e sua terra devastada, um dos episódios mais célebres do ciclo de histórias sobre o Rei Arthur e a demanda do Santo Graal); e ambos discorrem, em suas respectivas ficções, sobre o que é permanecer em vigília em um cosmos que parece estar em um perpétuo caos alucinatório.

Os personagens de Cormac McCarthy e Julien Gracq vivem em um permanente modo de espera por algo que nunca se sabe se acontecerá – e, se acontecer algum dia, certamente será catastrófico. Em O Passageiro, o americano conta a história de dois irmãos, Alicia e Bobby Western, que vivem uma relação incestuosa e cujos pais participaram ativamente da criação da bomba atômica no projeto Manhattan. Acompanhamos a via negativa de Bobby enquanto ele é atormentado pelas lembranças da irmã, uma esquizofrênica que se matou há dez anos ao ser perseguida por delírios comandados por uma entidade bizarra chamada Talidomida Kid. Pouco a pouco, Bobby – que foi um apaixonado por física quântica e por corridas de automóveis, enquanto Alicia foi um prodígio da matemática – perde os laços de afeto com a comunidade dos homens e se afoga cada vez mais na escuridão do seu próprio ser.

Intriga

Capa do livro 'Le Surrealism et la peinture', de André Breton, criada por Paul Bonet em 1934. A obra faz parte da exposição 'Surrealism: Two Private Eyes'  Foto: Guggenheim

Já em O Litoral das Sirtes, Julien Gracq narra a iniciação do jovem Aldo, herdeiro de uma família influente do estado de Orsanna, em um mundo onde sonho e poder se misturam sem nenhum aviso. Entediado com a sua posição já estabelecida na sociedade, onde é um membro exemplar, ele pede um posto na região fronteiriça das Sirtes, onde há o ponto de contato entre Orsanna e outro território no qual existe uma espécie de guerra estendida e indefinida – o Farghestão. Num cenário semelhante a O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, e À Espera dos Bárbaros, de J.M.Coetzee, o ingênuo Aldo percebe, de maneira fragmentada e nebulosa, uma intriga de espionagem, sedução e sedição a envolvê-lo por completo, urdida pela ardilosa Vanessa e com colaboração do taciturno capitão Marino e de outros oficiais que poucos sabem o que fazem ali de fato.

Contudo, diferente de Buzzati e Coetzee, Gracq não está interessado na “antecipação da esperança” em um evento derradeiro e transformador na vida dos personagens. O que o motiva a escrever o livro é justamente decompor, por meio de um estilo repleto de sensualismo, a mecânica de como esse mesmo evento já está antecipado na psique do próprio Aldo. E aqui temos, como bom surrealista que o francês era (ele sempre se considerou um discípulo de André Breton), as nuances do surgimento do inconsciente humano a explodir no centro do que julgamos ser a nossa consciência.

Cormac McCarthy nunca foi um surrealista, mas ele é também um escritor possuído pelas visões e sonhos que permeiam sua literatura

Cormac McCarthy nunca foi um surrealista, mas ele é também um escritor possuído pelas visões e sonhos que permeiam sua literatura. Neste sentido, O Passageiro é uma síntese memorável dos seus livros anteriores – e não seria exagero--- afirmar que cada um dos seus romances está conectado a outro, como se fizessem parte de uma longa história que poucos teriam a coragem de contá-la. Sim, lá estão o Kid que confrontou o temido Juiz Holden em Meridiano de Sangue (e que, na saga dos Western, possivelmente se transformou na mesma entidade que antes tentou combater); as origens da hecatombe nuclear que dizimou o mundo em A Estrada; o desespero silencioso a permear os capítulos finais de Onde os velhos não têm vez; os universos fronteiriços da épica trilogia formada por Todos os Belos Cavalos, A Travessia e Cidades da Planície; o incesto de Outer Dark; a perversidade de O Guardião do Pomar e Filho de Deus; e, last but not least, os marginais extremamente articulados (e divertidos) de Suttree, o único grande romance do final do século 20 que rivaliza diretamente com o Ulisses de James Joyce (e curiosamente nunca traduzido no Brasil).

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O Passageiro se assemelha a este último livro no corpus de McCarthy porque ambos são tramas que se deixam levar pelo sabor das suas conversações entre os personagens. Todos os assuntos importantes para a vida são discutidos ali: de física quântica (uma preocupação do escritor desde que ele integrou o time de scholars do Instituto Santa Fé, criado pelo prêmio Nobel Murray Gell-Mann, no final da década de 1980) até discussões sobre a natureza da realidade, passando pelo eterno problema do Mal e do sofrimento, tudo isso resulta na única questão que jamais é elucidada – até que ponto as nossas vidas podem ter algum sentido objetivo?

Crer em algo é se desviar do único evento possível e duradouro: o de que não há credo que nos ajude a enfrentar o absurdo do mundo

Curiosamente, a resposta, se há alguma, é que todas essas conversas giram ao redor do tema da crença. E o excesso dessas aparentes digressões se deve ao fato de que Bobby Western não para de encontrar essas mesmas pessoas que se ocupam da sua vida porque ele quer escapar da assombração que se tornou a sua própria existência. Crer em algo é se desviar do único evento possível e duradouro: o de que não há credo que nos ajude a enfrentar o absurdo do mundo.

Em O Litoral das Sirtes, Julien Gracq faz o mesmo procedimento com o imberbe Aldo. Suas ilusões são destruídas passo a passo: em primeiro lugar, é sua atração pela enigmática Vanessa; depois, a certeza de que a sua posição social está garantida; e então é a noção de que o seu papel no universo deveria ter alguma autonomia quando, na verdade, ele sempre foi apenas um peão em um jogo com cartas marcadas.

Isso não significa que, no aspecto político, esses dois livros não tenham algo a dizer sobre os nossos tempos de “pós-verdade”. Eles falam – e muito. Para McCarthy, o que acontece com Bobby é algo similar aos livros claustrofóbicos de Franz Kafka, nos quais o Estado nos sufoca em todos os detalhes e nos persegue sem dar um único aviso, do berço ao túmulo; segundo Gracq, o aparato estatal é fortalecido com o surgimento de uma guerra que finalmente movimente a máquina de poder e é a representação explosiva do inconsciente represado há anos.

Vigilia

Julien Gracq no documentário de 1995 sobre o escritor, peça é do diretor Michel Mitrani Foto: Museu da Imagem e do Som

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A fronteira entre Orsenna e o Farghestão transforma-se no limiar de um reino cuja doença se manifesta por meio de uma febre que o próprio Gracq já simbolizou anteriormente ao recontar a história do Rei Pescador no livro Le Roi Pêcheur (1948). Incapaz de perceber a beleza e a transcendência do Santo Graal, este monarca de uma terra devastada sofre com uma ferida incurável na perna e aguarda a chegada de um cavaleiro da Távola Redonda que o salvará dessa agonia. Tanto em O Litoral das Sirtes como em Le Roi, a vigília nunca parece terminar. No caso do primeiro livro, Gracq põe um ponto final – mas com um sabor de fracasso.

O mesmo ocorre com Bobby Western em O Passageiro. A espera por um cataclisma em sua vida termina apenas no recanto que adormece entre a consciência e o inconsciente. Não há outro princípio para ele exceto se deixar abandonar a uma Providência cada vez mais inescrutável. E será dentro das trevas que talvez encontrará um pouco de paz.

Nas linhas finais de O Litoral das Sirtes, Aldo reconhece que um conflito sangrento e duradouro será o que o futuro lhe preparará. O seu destino é muito semelhante ao de todos nós. Mas, tanto no caso de Cormac McCarthy como de Julien Gracq, o fracasso da vigília diante do inconsciente que nos domina, retratado nessas obras-primas da palavra, mostra que viver não é apenas ser assombrado, como nos dizia Philip K. Dick. É sobreviver ao lado dos nossos fantasmas e tratá-los com imenso carinho.

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SERVIÇO

O LITORAL DE SIRTES

JULIEN GRACQ

CARAMBAIA

304 PÁGINAS. R$ 100

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O PASSAGEIRO

CORMAC MCCARTHY

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ALFAGUARA

392 PÁGINAS R$ 85

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