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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião | A fé e as obras

A epístola do apóstolo Tiago enfatiza no capítulo segundo: a fé sem obras é morta

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Por Leandro Karnal

Jesus salvou todos. Para acessar a assembleia dos eleitos, a fé é o ticket. Solo fide, apenas a fé, proclamaram muitos reformadores religiosos do século 16. Lutero buscou a base em Hebreus 10,38: o justo viverá pela fé (também na Epístola aos Romanos e em outros trechos).

Escrituras sagradas Foto: Reprodução

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Os católicos valorizam a fé. Porém, a salvação passa pelas obras boas que evidenciem sua crença. A epístola do apóstolo Tiago enfatiza no capítulo segundo: a fé sem obras é morta. Lutero desconfiava desse trecho (epístola de palha, ele dizia). Chegou a querer afastar a carta do cânone do Novo Testamento. Tiago está próximo de uma concepção religiosa judaica: a prática correta da vida e de ações éticas. O princípio se chama ortopraxia. A Bíblia apresenta muitas concepções ao longo dos séculos em que foi redigida, com disputas entre grupos e diversas elaborações teológicas. Para um historiador, isso é a riqueza do texto. 

Encerro a teologia aqui. Quero ir para outra direção. Uso o binômio fé e obras para falar de pessoas que se dividem no campo do amor entre quem proclama e quem faz. Explico-me. Fui criado em tradição católica por muitos anos. Além do substrato romano, ainda tenho a presença de um “espírito de imigrante” na minha família e na região da minha infância e juventude. O que seria? Muitas coisas, mas, principalmente, ênfase na ação. Gente pobre que saiu de um país para construir vida em outro, quase sempre, foca em questões muito concretas e diretas. A vida em meio aos desafios do imigrante é casa, comida, proteção contra violência, poupança, etc. O mundo apresenta desafios: frio, fome, dor e cabe ao ser humano enfrentá-los com defesas práticas. É a etapa inicial de todo Robinson Crusoé: não existe metafísica, apenas física prática. Com o tempo, o náufrago faz reflexões filosóficas e antropológicas, todavia só depois, bem depois...

Creio no amor. Acredito profundamente no sentido amplo do termo. Se me perguntam como evidencio o amor que tenho ou que recebo, sempre será por... obras. Seria coisa de descendente de católicos que emigraram? Teologia e pobreza reforçando atos reais? Acho que sim. Assim, acho linda a frase “eu te amo”. Tendo a buscar as boas obras, sem necessidade de declarações românticas.  Você me ama? Avalio o tempo que passa comigo, a atenção que me dispensou, o cuidado (não o valor) do presente dado e a sensibilidade com o que necessito. Isso é amor. “Meu bem, eu daria minha vida por você.” Admiro a frase! Já ouvi, inclusive. Acredito em coisas mais prosaicas do que a hipótese de, um dia, se sacrificar por minha pessoa. Acredito na louça lavada, na noite passada em claro com alguma doença, no abraço no momento de dor, no velório compartilhado, na sopa trazida ao quarto e no chá no inverno.

Em quantos Natais vi choros de emoção dizendo que “família era tudo”. Pensava, com um toque de ironia: “Na hora de passar a noite no hospital com a matriarca, não parece ter sido tudo”. Volto a minha matriz: quero ver obras, não discursos, ações, não retórica. Claro, obras e a frase eu te amo são fundamentais. Se tiver de dispensar alguma, largue mão da frase e realize algo. “Eu te amo” sem cuidados é um “flatus vocis”, para fazer uma tradução simpática em jornal familiar, um som vazio. Sempre me soa como o homem que explora o trabalho feminino em casa o ano todo e, no dia da mulher, dá flores com um cartão. O gesto oscila entre o vazio e a hipocrisia. 

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Todos sabemos que tanto católicos quanto evangélicos condenam a hipocrisia e a falta de caridade. Usei a metáfora para falar do caso da relação entre as pessoas, não das pessoas com suas crenças. Há muitas maneiras de ortopraxia e é possível ser hipócrita fazendo boas obras também. Eu desejei explicar o vazio de declarações de amor sem atos concretos. No meu universo, creio que não o mudarei, o ideal é a reunião da fala com a ação. Como disse, se precisamos dispensar um, dispense o que não altera o mundo: a frase. Mantenha o ato e seu poder transformador. 

A coisa mais comovente é ouvir “eu te amo” da boca da pessoa que coroa atos com a confirmação discursiva. Nesse caso, ouço, emocionado. O verbo amar traz à memória o tempo, a dedicação e tudo mais. A boca emitiu sons e eu trago a lembrança de que aquilo virou ação. É o momento lindo de fusão de significante e de significado, a plena realização romântica de duas vidas significativas que se encontraram no ato e na retórica. 

Gosta de lindos discursos? Lembro-me do equívoco do rei Lear, que favoreceu as filhas que falavam bem e deserdou a única que o amava, mas era incapaz de dizê-lo de forma bonita. Aprenda a valorizar Cordélia e sua entrega sincera. 

Com os recursos da tecnologia atual, eu posso fazer meu celular dizer e repetir a frase “eu te amo” o dia inteiro. Você se apaixonaria pelo aparelho? A vaidade de Lear o condenou a um fim trágico. A vaidade sempre se alegra com os elogios e as frases retumbantes. O amor é modesto e olha para as mãos que realizam. Quando essa frase for dita dentro da sua orelha, sussurrante, por alguém que consumiu muito tempo dedicado a você, parabéns! Você encontrou o amor. É preciso ter esperança e fé no amor... e nas boas obras. O AUTOR É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS,  AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’, ENTRE OUTROS

Opinião por Leandro Karnal
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