O diabo e Deus, Batman e o Coringa, Lula e Bolsonaro, Palmeiras e Corinthians, veganos e carnívoros, EUA e URSS, Coca e Pepsi, Modernos e Parnasianos, Filipe II e Elizabeth I, Getúlio Vargas e Carlos Lacerda, gregos e troianos... As duplas polarizadas de inimigos são essenciais na constituição da História. São antagonistas indispensáveis; sem elas, o outro lado seria diferente. Constituem uma identidade estrutural e dependente. Equilibram-se mutuamente, agregando seguidores mais por exclusão do outro do que por adesão a um. A alteridade assim constituída se transmuta em um jogo circular de causalidade.
Dorme feliz o católico devoto por confiar no seu rosário, na hóstia, no papa e no auxílio dos santos. Observa seu vizinho protestante e sente um misto de piedade pela religião equivocada que se nutre em Lutero e seus seguidores. Inquieta-se o protestante com o “equívoco” do católico em relação às imagens. Adormece o reformado na santa paz por ter como fundamento apenas a Bíblia, sem desvios. Nos sonhos, católicos e protestantes contemplam Jesus satisfeito e abençoando a escolha certa de cada um: “Que bom estar ao lado da Verdade revelada a mim e ausente no meu irmão católico/reformado”. O terceiro vizinho, ateu, lamenta a cegueira dos dois primeiros e fecha os olhos; está coberto pelo edredom da Razão, feliz por não compartilhar as superstições e crenças mágicas dos católicos e dos protestantes. Os três chegam ao leito com a certeza de que estão do lado certo da História. Seriam ainda mais felizes se os outros abandonassem seus equívocos e descobrissem a beleza da Verdade, que brilha apenas na minha casa e escasseia no resto da rua. “Pobre vizinho, boa pessoa, mas ingênuo e equivocado” – meditam, cerrando os olhos sábios.
No entanto, o que seria de mim sem o oposto como contraponto? Reinaria a felicidade se todos fossem idênticos a mim? O processo de constituição da identidade é por oposição: somos mais definidos pelo que somos contra do que pelo que somos ou o que os outros não são. Exemplifico: eu só consigo adjetivar minha pessoa a partir das comparações. Sou gordo, sou finlandês, sou claro, sei dirigir, sou burro: isso necessita de alguém em analogia. Se todos os humanos medissem um metro e setenta centímetros, desapareceria a percepção do alto e baixo. A identidade só decorre de uma alteridade grupal. Eu me alegro pelo meu time, mas é fundamental que eu possa atacar e “zoar” com as pessoas do outro clube. Sem adversários, a graça do futebol vira pó. O encanto da Ferrari também deriva do fato de ela não estar em todas as garagens do planeta. Minha alegria da posse está em diálogo com a escassez do colega.
O conceito de “mulher honesta” existia como espelho invertido da “prostituta”. A prisão serve para isolar alguns indivíduos e, principalmente, demonstrar – os que estão fora dela seriam livres. O gay forma parte da identidade do heterossexual. O que eu não sou, o que não posso ser, o que tenho horror em vir a ser: são eixos definidores de um roteiro que eu sigo a partir de uma oposição.
Eu não sou como você, eu sou diferente: a própria percepção da diferença necessita construir um X para eu poder seguir um Y. No Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, a cena mais arquetípica é a da barca. O demônio, vendo os horrores da história futura, o sofrimento intenso dos mártires, toma a decisão de mudar de vida. O diabo decide converter-se! Quem o detém? Deus Pai, que rapidamente lembra ao anjo rebelde como Ele depende dessa oposição. Uma parte do argumento está também no texto do Grande Inquisidor, de Dostoievski. O cardeal faz o papel de um político realista que, interrogando o próprio Jesus, demonstra que o Filho atrapalha a Igreja por não entender a real natureza humana. Jesus deve ser executado, porque é um inimigo da Verdade. O cardeal espanhol assume o papel Realpolitik do Deus Pai de Saramago: a Primeira Pessoa da Trindade e a Igreja precisam do mal como parte de um projeto circular e necessário.
As dualidades são complexas entre o careta e o drogado, o ébrio e o sóbrio, o obeso e o definido, o fiel e o libertino, a funcionária pública e a empreendedora, o diligente e o preguiçoso. Não é à toa que todo psicanalista presta atenção na personagem que me irrita: ali está uma parte minha denegada, sublimada e pouco consciente. Pelas dobras dos lapsos, da reação excessiva, das explosões inexplicáveis e críticas constantes, vamos revelando sob que máscaras nosso recalcado se contorce.
Repare que nossas fofocas constituem pessoas terríveis que devem escandalizar meu ouvinte e provocar a alegria da certeza de que eu e meu interlocutor não somos como aquele terceiro. Talvez, sem inimigos, nós não tivéssemos amigos. Nossas narrativas são nosso retrato em contraste. Ame-me porque não sou igual a ele, sou o perfeito oposto. Porém... todo adversário traz o DNA do seu elaborador.
E para você entender o que estou desenvolvendo, imagino, em devaneio, Bolsonaro e Lula de mãos dadas em uma linda praia ao cair da tarde. Um olha para o outro. Em uníssono, agradecem a existência alheia, sem a qual parte da sua força teria desaparecido: “Obrigado por me fazer ser quem sou, obrigado por existir e dizer-me o que penso. Sem você, eu seria apenas mais um”. E ambos seguiriam, com esperança, pelo arrebol luminoso que teima em se opor à noite...
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