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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião | As bolsas e o capitalismo: um diálogo sobre valor de mercado, meritocracia e justiça

Será que ‘nada mais podemos fazer a não ser aceitar a miséria como um dado pétreo?’

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Atualização:

A discussão é verdadeira. Altero apenas alguns dados para ocultar os participantes reais. Uma pessoa segura uma bolsa cara. Melhor seria dizer: caríssima. A amiga exclama e indaga:

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“Nossa, sua bolsa vale uns 120 mil reais! Quanto você paga à sua faxineira?”.

“Pago o valor de mercado. O salário não é proporcional à renda do contratante. Se assim fosse, a funcionária que limpa a mansão da família Safra deveria receber 70 mil dólares por mês? O salário é fruto de um diálogo com o mercado, com minhas necessidades, com a realidade da funcionária e tem uma certa ‘lógica’.”

“Mas... você não se sente mal por isso? Há crianças passando fome...”

Pessoa carrega bolsa em exposição ocorrida em Cingapura em 2005 Foto: Tim Chong/Reuters

“Sim, e essas crianças ficariam felizes também com o seu celular. Você deixaria de produzir bastante se não tivesse o aparelho. Ele é seu instrumento de trabalho. Graças a ele, você consegue contratar quatro pessoas, para a sua casa, e 12 para o escritório. Você gera muitos empregos, e as pessoas recebem pelo seu trabalho. Claro: você pode doar todos os móveis, computadores e bolsas. Pode enviá-los para uma área pobre de Bangladesh. Você condenaria aqui várias pessoas à fome, mas salvaria outras na Ásia.”

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“Sei lá! Mas você e eu estamos crescendo nos nossos negócios. Não seria bom ir aumentando os salários?”

“Talvez, se todos concordassem em diminuir quando houvesse queda de receita. Há dois anos, durante a pandemia, perdi 30% da minha renda. Eu poderia chegar à empregada e dizer: ‘Vamos abaixar seu salário?’. Ela acharia ruim. Dividir lucros e assumir crises não seria um caminho irracional? Eu a mantive, pagando o mesmo valor, ainda que ela tenha deixado de vir por alguns meses. Faz parte de uma responsabilidade recíproca.”

“Você me parece muito objetiva e capitalista. Acho apenas que poderia existir mais justiça social.”

“O sistema está dado. Você deve pagar seus impostos previstos, honrar com os compromissos trabalhistas, respeitar as pessoas e oferecer o que é viável. Você é livre para fazer trabalhos voluntários ou doações para entidades assistenciais. Mas... a regra de ouro é nunca abraçar de tal forma o afogado que ele lhe arraste para o fundo. Isso expandiria a pobreza, não a riqueza.”

“Porém, doar cestas nunca resolverá a fome.”

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“Doar minha bolsa também não. Se minha bolsa ou o valor a incomodam, por que você não faz uma artesanal em casa? Você é boa em costura. Isso estimula o criativo e até a sustentabilidade, mas... pode diminuir vagas de empregos. E, sim, pode vender tudo o que possui e dar aos mais necessitados. Você é livre!”

“Já refleti. Lá no nosso escritório de advocacia, alguns pareceres custam uma fortuna. O trabalho é feito por muita gente; apenas eu e meu marido recebemos o grosso dos pagamentos, porque somos os proprietários. Sei que essa é a lógica da sociedade. Por vezes, parece que a gente está tirando das pessoas.”

“O cliente procura vocês pela fama, rede de relações, capacidade gerada pelos conhecimentos, certeza de qualidade e o peso do seu sobrenome, com notório saber, ou seria por causa do estagiário?”

“Ah, com certeza pela gente!”

“E os advogados que estão lá, assalariados, podem sair e abrir seus próprios escritórios, como vocês, não é?”

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“Sim, podem. Alguns se tornaram sócios minoritários. Outros fundaram uma empresa. Um foi para o exterior e prospera. Alguns que ficaram são excelentes e causam aumento de produtividade. Estes nós fomos promovendo, aumentando a participação nos lucros do escritório.”

“E outros foram ficando e apresentavam pouca iniciativa. Você nunca ofereceu sociedade a eles, não é?”

“Verdade! Mas... sua ideia de meritocracia parece fazer um jogo de cada um por si e ‘que vença o melhor’. Nada mais podemos fazer a não ser aceitar a miséria como um dado pétreo?”

“Você pode me acusar de tudo, menos de idealista. Meu mundo é o real, e nossa chance de atingir um paraíso é limitada. Minha ação tem poder cerceado, e o custo de todo ‘admirável mundo novo’ é muito alto. Prefiro reformar e melhorar o que temos, fazer o certo em vez de, em uma tacada, imaginar que o sistema pode ser derrubado hoje e amanhecer melhor, daqui a uma semana. Não acredito nisso. Minha experiência de vida me indica, até hoje, que as rupturas possuem valor muito alto, quase sempre excessivo.”

“Sim, você já defendeu sua posição de conservadora não reacionária. Lembro-me da festa lá em casa: você não idealiza o passado, tampouco acredita que todos eram mais felizes. Logo, não é reacionária. Não crê que o paraíso esteja logo à frente e que possa ser atingido rapidamente. Logo, tem pouca identidade com o pensamento tradicional de esquerda. Você acredita que o presente seja uma negociação entre o que recebemos e o que legaremos. Apenas acho que tudo isso é muito teórico, coisa de europeu.”

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“Sim, a fonte é europeia, mas a esquerda também nasceu na Europa durante a Revolução Francesa. O anarquismo é europeu, o marxismo é europeu, o nacionalismo é europeu, etc., etc.”

“Assim como esta sua bolsa, né, amiga? Posso pedir emprestada?”

E você, querida leitora e estimado leitor: qual é a sua esperança sobre bolsas e capitalismo?

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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