Há textos que escrevo e sei que despertarão críticas. Acho saudável o debate sobre temas relevantes. Seria importante ouvir um pouco antes de falar?
Começo pelo pensamento tradicionalmente atribuído à esquerda: a defesa do aborto. Os argumentos variam: liberdade da mulher, “meu corpo; minhas regras”, crítica à interferência da religião no útero alheio, etc. Os princípios da autonomia da decisão feminina ficam sobrepostos a outros valores. Esse é um ponto de vista.
Entre alguns conservadores, religiosos e outros grupos, existe a defesa absoluta da vida do feto. Nada pode ser mais importante. Assim, se a gravidez deriva de estupro ou se representa risco de vida para a mãe, o valor vida do feto se sobrepõe a tudo, inclusive ao risco da vida da mãe. A gestante tem memória de uma violência? O incômodo dela é inferior à vida do feto. O feto revelou anencefalia? Mesmo que a lei ampare o aborto, mesmo que a chance de vida seja breve, o valor vida do feto é superior. Esse é outro ponto de vista.
Duas visões de mundo: o valor absoluto da vida do feto e o valor absoluto da liberdade da mulher. Meu texto não é o debate a respeito de um ou outro argumento. Há pontos variados sobre o que é o começo da vida (e o que seria a vida em si) que devem ser pesados, mas escapam ao objetivo curto desta coluna. e
Uma mulher clássica feminista e militante de esquerda defenderá seu direito à liberdade. Em princípio, a mesma mulher também será contra a pena de morte, contra o uso de armas, contra a tortura e defenderá, com unhas e dentes, a vida atingida pela violência. Aqui vai o fato que merece debate: a vida do feto pode ser relativizada, mas a vida fora do útero (especialmente a do pobre ou a de minorias) é sagrada.
Quase todos os conservadores são contra o aborto, mesmo com o risco extremo para a mãe. O mesmo grupo, por vezes, defende a pena de morte. Alguns chegam a ponto de relativizar a violência policial, com o surgimento até do conservador que considera a tortura um mal menor ou desculpável. Aqui vai o fato que merece debate: a vida no útero é completamente sagrada e, saindo dele, é relativa, ou seja, pode ser retirada em determinadas condições.
Caetano Veloso, identificado com algumas pautas de esquerda, canta na música Haiti: “E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital / E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto/ E nenhum no marginal”. Ele nota a contradição de certo recorte político-religioso com toda a razão. Eu aponto a ambiguidade de todos os grupos.
Se tivesse de sintetizar de forma a provocar mais, eu diria de forma esquemática: a) esquerda: a vida do feto é relativizada pela liberdade, pelo bem-estar da mãe ou pela própria vida da gestante. No momento em que o feto se torna um ser humano fora do útero, a vida é sagrada e nunca deve ser limitada, encerrada, atacada ou constrangida; b) direita: o direito à vida do feto é absoluto, mesmo que não tenha chance de sobrevivência, mesmo que represente risco para a mãe ou signifique enorme dor emocional por ser fruto de violência; porém, depois de nascer, o ser humano só terá direito à vida plena se for honesto e bom cidadão. Se eu quisesse ser ainda mais polarizado: a esquerda considera que o pleno direito de vida começa depois do nascimento, mas a direita considera que ele se encerra no mesmo momento. Não nasceu ainda? Devo considerar se é conveniente para a mãe que você venha ao mundo. Já nasceu? Posso condená-lo à morte ou dar uns safanões, porque você não segue o caminho do “cidadão de bem”. Em um campo, todos são zona cinzenta até o parto; em outro, todos são “vidas sagradas”, após a luz do mundo iluminar seus corpos. Em ambos, a vida é relativa a partir de certos valores.
Não se trata, exatamente, do imenso debate sobre o sistema nervoso já estar formado, da consciência ou não do feto nas primeiras semanas, do bem-estar de A ou B. A discussão está em saber qual valor vai relativizar a vida. Posso relativizá-la pela já formada existência da mãe ou posso fazê-lo pelo bem-estar da sociedade. É uma concepção filosófica. Exemplo? A vida de alguém no útero é inocente e nunca pode ser atingida. Uma vez que esse ser cresceu e cometeu crimes, sua vida deve ser privada da liberdade (ou até da própria existência), porque perdeu a pureza. Assim, essa existência é matizada pelos conceitos morais do livre-arbítrio e do mal.
“Leandro, você é homem e não tem lugar de fala para debater gravidez.” Nesse caso, você elege gênero como critério para relativizar a opinião sobre a vida. Provavelmente, você tem útero e considera que a posse dele confere a autoridade máxima sobre aborto. “Você não é religioso; por isso, discute aborto assim.” Você acaba de identificar fé como o fator que vai assegurar, ou tornar absoluta, a vida humana. De muitas formas, toda discussão é sobre qual o ponto de vista que você vai escolher para interditar, permitir ou liberar o aborto. O que será absoluto será o seu ponto de vista, não exatamente o direito à vida. Tenho esperança no uso responsável da nossa liberdade.
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