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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Cachorros são mais livres do que a maioria de nós, humanos

As rainhas Victoria e Elizabeth II amaram seus maridos, mas confiavam mesmo nos seus cães. Mulheres sábias...

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Seu cachorro possui desinibição moral. Defeca e urina com tranquilidade. Dorme em lugares inusitados e sem deferências sociais. Alguns se apegam às pernas da visita, com fúria erótica e sem barreiras de etiqueta ou decência. Manifestam afeto e raiva sem muita restrição. Cachorros são mais livres do que a maioria de nós, humanos. A fama é secular.

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Alguns cachorros da Rainha Victoria possuem túmulos celebrados nos jardins reais. Quando Dash morreu, em 1840, sua lápide assinalou que ali jazia um ser que se apegava sem egoísmo, brincava sem malícia e manifestava uma fidelidade sem enganos (“His attachment was without selfishness, His playfulness without malice, His fidelity without deceit”). Na permanente projeção moral sobre os animais, os cães eram louvados por virtudes superiores à média dos filhos de Adão. A jovem Victoria amava border collies. Um corgi causava mais comoção à sua trineta, Elizabeth II. Ambas amaram seus maridos, mas confiavam mesmo nos seus cães. Mulheres sábias...

Houve uma escola filosófica que estava associada aos cachorros. Kyom ou kynos é a palavra em grego para cachorro. A liberdade sincera dos animais foi associada a alguns filósofos chamados de cínicos. A palavra cínico significa, na filosofia helenística, os seguidores do pensamento livre e alheio a convenções sociais. Talvez a origem esteja no nome de um ginásio esportivo para pessoas alternativas (filhos ilegítimos, filhos de escravizados, etc.) que pode ser associado à palavra para cachorro ou ao próprio estilo de vida dos cínicos. Em todo caso, os filósofos tornaram o termo “cachorro” um elogio.

Ao contrário de hoje, em que a palavra significa dissimulado, cínico era associado a cachorros na filosofia helenística. Entre os cínicos famosos, brilha o nome de Diógenes. Alheio a convenções sociais, destituído de ambição material e cruamente sincero, Diógenes morava em uma barrica.

Talvez seja o filósofo com maior quantidade de anedotas. Vivia dentro de um barril, cercado por cachorros. Percorria as ruas de Atenas, em plena luz do dia, com uma lâmpada em busca de um homem honesto. O filósofo ficou famoso, e contam que Alexandre, o Grande, foi até ele e anunciou que poderia dar ao pensador qualquer coisa. Diógenes pediu que ele saísse da frente, pois estava tapando o Sol. Se ele se referia à estrela que nos aquece ou à metáfora da Verdade, nunca saberemos. De toda sorte, admiramos o homem que recusou qualquer benefício. Era livre por pouco ou nada desejar. A virtude cínica da autarquia, da autonomia diante do mundo, tornava-o um primeiro “hippie” a contestar consumo e ostentação.

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Andava com um manto, um bastão para facilitar as caminhadas e, diziam, levava uma concha para beber água. Um dia, ao se inclinar no rio para matar sua sede com a concha, viu uma criança tomando água com as mãos, sem auxílio de mais nada. Olhou para sua concha, recriminou-se, jogou-a fora e tomou água com as mãos, desfazendo-se daquilo que passou a considerar excessivo.

Há proximidades entre os padres do deserto, no início do Cristianismo, e a filosofia cínica. A vida despojada conjugava certos traços de estoicismo com uma proposta radical de abandono dos apelos sociais. Crates de Tebas, por exemplo, era de uma família rica e largou tudo para seguir o modelo cínico, como um Francisco de Assis avant la lettre. Crates se tornou professor de Zenão, o primeiro grande estoico, reforçando os laços entre as duas escolas. Houve quem associasse, inclusive, a figura de Jesus Cristo a um comportamento similar no desapego, na renúncia às vaidades mundanas, na defesa radical da liberdade de ser como os “lírios do campo e as aves do céu”. Jesus viveu em uma era de “revival” cínico no Império Romano, o século primeiro da nossa era. Por todo o império, existia uma “moda” de filósofos com manto e cajado, percorrendo as ruas, despertando risos e admiração em doses desiguais. As sociedades costumam admirar sem seguir os modelos de pessoas desprendidas.

Parece que os cachorros continuam sendo exemplos interessantes. Não li, mas descobri na internet um livro chamado Tudo o Que Eu Sei sobre Gestão Aprendi com Meu Cachorro, de Martin Levin (Saraiva). Segundo os resumos que circulam, ele analisa sua golden retriever, Angel, para entender questões de comunicação e de acesso aos clientes. A partir dessa nova escola canina, podemos pensar – se os cães ensinavam Diógenes e outros a se afastarem do mundo do sucesso e das riquezas, os novos cachorros contemporâneos podem aumentar sua carteira de clientes e reforçar sua ascensão no empreendedorismo.

E você, minha querida leitora e meu estimado leitor, o que consegue aprender diante do contato caloroso com seus cães? Quais aulas você tem recebido? Admiro os cachorros, seres que ensinam tudo o que nosso desejo quiser. No fundo, assim funciona a educação: uma vontade minha que encontre um motivo externo para seguir o que quero. A esperança nos cachorros vai de vento em popa; nos humanos, ela está em baixa. Au-au! Boa semana para tutores e seus mestres cínicos...

Hector, Nero e Dash, os cães da Rainha Victoria Foto: Domínio Público
Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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