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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião | Caneta azul, azul caneta

Em 1950-60, havia o duelo entre a elegante caneta-tinteiro e a cada vez mais popular esferográfica

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Por Leandro Karnal

A humanidade usou muitas coisas para escrever. Escribas egípcios empunhavam um cálamo, um pedaço de cana ou junco afiado em uma ponta. Escreveu-se por mais séculos com cálamos do que com canetas. Muitos romanos empregavam uma pequena haste, o estilo, que acabou contaminando a palavra para denominar o jeito de cada um escrever. A pena teve longa história e batizou, muito depois do seu domínio, os muitos “pen clubs” do mundo. Quase tudo o que o padre Vieira escreveu foi com o sacrifício de gansos, patos e cisnes. Com o tempo, foram feitas pequenas peças de metal que eram molhadas na tinta e duravam mais do que as derivadas de aves. Os primeiros aparos de aço, a ponta de metal para colocar na tinta e adaptada em uma haste de madeira ou metal, foram difundidos na Inglaterra do fim do século 18. Dali foi um salto para a caneta-tinteiro, que nada mais é do que o aparo de metal com depósito de tinta próprio. A caneta-tinteiro (e suas inovações) dominou o mundo da escrita. Chegou a virar peça de joalheria, com materiais nobres e trabalhos artísticos rebuscados. Guardava sempre alguns problemas: borrões, tinta instável, dedos sujos, etc. A caneta com tinta permanente surgiu no século 19, e o pioneiro batiza marca até hoje: Lewis Edson Waterman. Chegamos perto da 2.ª Guerra Mundial. Um húngaro surge com uma invenção que chamou pouca atenção na Europa em crise fratricida. Trabalhando em tipografias, László Biró chegou à ideia de uma caneta com uma bolinha que, automaticamente, transferisse a tinta do corpo da caneta para o papel. Estava criada a caneta esferográfica. Ao emigrar para a Argentina, levou sua ideia e lá começou o sucesso estrondoso do novo instrumento de registro escrito. O inventor genial faleceu em Buenos Aires, em 1985. Vamos focar no período dos anos de 1950 a 1960. Havia um duelo entre a mais cara e elegante caneta-tinteiro e a cada vez mais popular esferográfica. Uma caneta-tinteiro era um presente comum de formatura. Tal como eu, muitos herdaram as canetas dos pais, guardando a peça que poderia ser mais comum (Parker 51) até obras-primas de valor incalculável. Ter, como eu tenho, pequena coleção de canetas-tinteiro é sinal insofismável de idade. Os bancos resistiram à inovação. Consideravam a escrita esferográfica pouco confiável. Escolas continuaram alfabetizando com canetas-tinteiro, obrigando alunos a desenhar mais a letra. Até hoje, a bela arte da caligrafia que sobrevive em sofisticados convites de casamento evitará a plebeia caneta esferográfica. A caneta-tinteiro é uma rainha destronada, majestosa e com súditos leais e cada vez mais idosos, entre eles, este cronista. Emprestei muitas canetas-tinteiro para alunos assinarem uma lista de presença. Sendo jovens, o resultado era não conseguir ou entortar a ponta metálica da peça. É uma habilidade motora específica e, claro, implica certa motricidade que as esferográficas e os teclados erodiram. Toda novidade causa entusiastas e luditas (quebradores de máquinas) ou, segundo o falecido Umberto Eco, apocalípticos e integrados. Na resistência técnica, está um esforço de reconstruir um mundo perfeito. A caneta-tinteiro implicava letras mais bonitas, pessoas mais educadas, um mundo de chapéus e salamaleques que a esferográfica acabaria por destruir. O instrumento de escrita simboliza o passamento, o mundo extinto e irrecuperável que, claro, sempre será mais perfeito na memória do que era ao vivo. Sim, não precisamos de muitos estudos para perceber que escrever com uma caneta-tinteiro tem um ritmo mais lento do que digitar em um teclado do computador, como faço neste instante. O texto à mão com caneta-tinteiro deve pensar mais na palavra a seguir. A digitação segue um fluxo em que o automático quase nos possui. Mais: como tantos que estão lendo agora, quando sou obrigado a fazer minha simples assinatura, tenho imensa dificuldade, pois a técnica da escrita com caneta está fraquejando em algum lugar do meu cérebro e da minha coordenação. Tenho de tentar “imitar” minha assinatura, estelionato de mim mesmo é constrangedor. Há alguns anos, além de escrever muito à mão, ainda havia cheques, infindáveis, diários e repetitivos. Qual foi a última vez que você fez um cheque? Após séculos de uso de instrumentos de escrita, chegamos ao ponto da música “caneta azul, azul caneta”. Qualquer julgamento musical é sempre uma expressão subjetiva que fala mais de quem escreve do que do objeto analisado. Assim, falando só do meu ponto de vista, a música é escassa em recursos sonoros e de léxico rarefeito. Se não confia no meu julgamento, escute, mas insisto: eu avisei. Eu indicaria a bela música Aquarela (Toquinho, Vinicius, Maurizio Fabrizio e Guido Morra) de linha melódica suave e letra poética. Nem sempre o momento atual é o ápice da civilização em alguns pontos. O instrumento de escrita é menos relevante do que o ato de escrever em si. Ler e escrever são as grandes revoluções do mundo. O analfabetismo total diminui, porém resiste no Brasil. O analfabetismo funcional, com Bic ou computador, parece até crescer. De vez em quando, temos de lutar para manter a esperança. 

Opinião por Leandro Karnal
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