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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Leandro Karnal: Como salvar a democracia? E quais as raízes da corrosão autoritária?

Penso que a democracia não é um lugar fixo, mas uma caminhada árdua. Eu tenho esperança na nossa democracia. Ingenuidade?

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Atualização:

Estes dois autores são professores de ciência política em Harvard. Ficaram famosos há alguns anos, com o livro Como as Democracias Morrem (Ed. Zahar). Steven Levitsky e Daniel Ziblatt trabalhavam, naquela obra de 2018, com a figura de Trump, um presidente que subverteu várias lógicas tradicionais da política de Washington. Se a democracia clássica enfrentava risco com golpes violentos no passado, agora ela padece vivendo as regras do sistema eleitoral. O livro foi de enorme influência, desde o lançamento.

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Passados alguns anos, os dois professores voltam ao tema, com a obra Como Salvar a Democracia (Ed. Zahar). Ela incorpora novos acontecimentos e busca soluções, não apenas o diagnóstico da crise. O primeiro livro teria sido uma bateria de exames; o segundo indica remédios para a doença política.

O ponto de partida foi a eleição de um senador negro (usam o termo afro-americano) e de outro judeu, na Geórgia (região problemática de debates raciais antigos). Foi no dia 5 de janeiro de 2021. A presença do pastor Raphael Warnock e de Jon Ossof era um furacão que parecia deixar os piores momentos dos discursos trumpistas para trás. Alguém poderia ter sonhado que o discurso famoso de Martin Luther King (“I Have a Dream”) realizara-se e, com isso, as crianças de origens variadas poderiam andar pelas colinas vermelhas da Geórgia.

Evento em favor de Donald Trump no Centro de Convenções de North Charleston, nos Estados Unidos, em 14 de fevereiro de 2024. Foto: Win McNamee/ Getty Images via AFP

A lufada de esperança enfrentou um obstáculo assustador: no dia seguinte, 6 de janeiro de 2021, algo inacreditável ocorreu. Um grupo de radicais invadiu o Capitólio, interrompendo a sessão de confirmação da vitória de Joe Biden. Em uma sucessão de horrores, quebraram, agrediram e vandalizaram o prédio, com várias outras pessoas tentando impedir o vandalismo. A mais antiga democracia das Américas viveu seu dia de Banana Republic. Centenas foram indiciadas e presas. Debateu-se muito se o presidente derrotado, Donald Trump, teria participação na tentativa de golpe.

Os poderes constitucionais dos EUA reagiram. O mundo ficou estarrecido.

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Parte do Brasil olhou para a tragédia setentrional de 6 de janeiro de 2021 e criou sua farsa, no dia 8 de janeiro de 2023. Porém, o tema da crônica é o livro, não o pastiche tropical.

Um dos eixos dos autores é a reação à diversidade crescente das sociedades. Como a democracia pode incorporar e fazer dialogar grupos distintos? Como os grupos que concorrem podem entender a derrota em uma eleição, porque existe uma vontade soberana, mas não o fim do mundo? Como lidar com a diversidade?

Usando método de perspectiva comparada em história, eles voltam a fevereiro de 1934, na França. Grupos conservadores e xenófobos promoveram agitações nas ruas de Paris e atacaram a Assembleia Nacional. Eram variados, incluindo alguns (mas não todos) fascistas declarados. Gritavam: “A França para os franceses!”

Ameaçavam matar os deputados, alegando que eles eram fracos e corrompidos. Era uma tentativa de golpe por grupos que se anunciavam, como as “jeunesses patriotes”, absolutamente “nacionalistas e devotados à França”. Mataram pessoas. Quase jogaram um ministro no Rio Sena. A democracia francesa sobreviveu ao vandalismo radical de 6 de fevereiro de 1934.

Usando esses e outros exemplos, os autores buscam as raízes da corrosão autoritária. Há acusações diretas. O capítulo 4 tem o título “Por que o Partido Republicano Abandonou a Democracia?”, em uma análise forte com nomes e ações concretas.

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Como incorporar grupos variados? Como garantir ordem e respeito às instituições, sem injustiças? Quais são as minorias e como dialogam com a maioria? A resposta vem da tradição dos Artigos Federalistas, do fim do século 18, no texto conhecido de Alexis de Tocqueville (A Democracia na América) e de outro menos conhecido no Brasil, A Comunidade Americana (do escocês James Bryce, no original: The American Commonwealth, 1888).

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A resposta dos professores de Harvard é a questão de um governo, de fato, multirracial não apenas nas leis, mas igualmente em todas as práticas e representações. Isso salvaria a democracia dos EUA. Em tom quase messiânico, encerram com uma convocação, na página 233: “Precisamos evitar o erro de nos afastarmos da vida pública por exaustão. Forças pró-democráticas alcançaram vitórias importantes em 2020 e 2022, mas os fatores responsáveis pelo recente retrocesso dos Estados Unidos – uma minoria partidária radicalizada e instituições que a protegem e fortalecem – persistem. A democracia continua à deriva. A história nos convoca novamente”.

Penso que a democracia não é um lugar fixo, mas uma caminhada árdua. Está mais próxima de uma escada do que de um pódio. Para os autores, o que foi feito, ampliando o direito de voto aos pobres brancos, depois a negros e mulheres, fez parte dessa expansão. O trabalho continua.

Como dizem na epígrafe, a nação não está quebrada, “apenas inacabada”. Eu tenho esperança na nossa democracia. Ingenuidade?

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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