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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião | Deus e o sofrimento humano: a busca por sentido diante da fé e da tragédia

Com Deus não se brinca, então, vale sempre a resposta divina a Jó: ‘Quem é você para saber dos meus planos?’

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Quando Paulo escreveu aos gálatas (no atual território da Turquia), anunciou: “...de Deus não se zomba. Pois o que o homem semear isso também colherá” (Gl 6,7). A Igreja Católica assinala o “temor de Deus” como um dom do Espírito Santo. O sentido da palavra temor pode trazer ao menos duas linhas: a) Deus castiga e mata como em Sodoma/Gomorra ou no Dilúvio; tem poder e pune; logo, eu, humano frágil, temo ser atingido pela ira divina e tenho medo; b) um Deus-Amor que deseja minha salvação. Eu, repleto desse sentimento, busco o plano superior para viver de acordo com ele. O temor, nessa segunda acepção, nasce do afeto e não do medo. Evito decepcionar quem me ama.

Carlos Ruas é um talentoso fluminense que pensa por meio de desenhos. Faz tirinhas divertidas e inteligentes que nos obrigam à reflexão. Ele fez um desenho no qual a figura de Deus Pai está sozinha na gangorra de um parque, isolada e sem alguém para compartilhar seu divertimento. Abaixo, uma espécie de advertência: “Com Deus não se brinca”.

'Como toda pessoa, tenho certo grau de empatia com outros humanos. Quando alguém culpa a vítima por uma tragédia, eu me incomodo.' Foto: Marco/Adobe Stock

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O desenho explora a ambiguidade da frase: se eu disse que “com meu avô nunca se brinca”, pode indicar não o respeito que eu possa ter a ele, mas amargura, violência e ressentimento do patriarca. Respeito e medo, fundidos em um único sentimento, elaboram uma criação específica e não apresentam todo o sentido dos termos. Em 1943, também não se brincava (e nem se zombava) de um guarda da SS em um campo de concentração nazista. O respeito nascia do medo, mas não da dignidade do cargo.

Em primeiro lugar, gostamos de colocar lógica de crime e castigo no mundo a partir das nossas convicções. É uma tradição tornar Deus um capanga das ideias: “Ah, este temporal forte e o desabamento das casas foram punições pelos pecados daquela cidade”. Bem, e o meteoro que provocou (mais uma) extinção em massa, há 65 milhões de anos, foi falta de fé de um tiranossauro desgarrado ou blasfêmia de um pterodáctilo ímpio? Talvez a infração mais grave do mandamento que proíbe tomar o santo nome do Criador em vão seja esta: Deus se torna agente da minha insegurança e da minha moral. Vale sempre a resposta divina a Jó: “Quem é você para saber dos meus planos?” Quase sempre, é o ressentimento do homem que se julga piedoso e que invoca o Criador para moldar o mundo e punir seus desafetos.

Muitos indicam que o Titanic afundou porque, ao sair, os proprietários da White Star Line teriam dito: “Este navio nem Deus afunda”. Essa história, inteiramente apócrifa, foi inventada após o naufrágio e tentava estabelecer uma ligação entre a impiedade da ideia e o castigo. Qual a lógica? Mais de duas mil pessoas morreram no acidente de 1912 porque os ricos proprietários teriam dito uma frase imbecil? Crianças, mulheres, pobres, gente religiosa e outros perderam a vida porque um rico foi orgulhoso? Não seria mais prático Deus ter matado o ímpio milionário do que crianças? Em 1927, o Principessa Mafalda afundou-se na costa brasileira. Alguém teria dito algo impróprio? O trágico choque da balsa “Dona Paz” com um navio-tanque, em 1987, nas Filipinas, resultou em mais de quatro mil mortos (o dobro dos do Titanic). Muitos pecadores a bordo? A busca de uma lógica metafísica para fatalidades ou descuidos técnicos, no meu entender, é um insulto ao conceito de Deus. Volto sempre ao capítulo 38 de Jó, dirigido a ele e a todos os humanos: “Quem é você para saber dos meus planos?” A rigor, dizer que “Deus fez isto ou aquilo” porque corresponde ao meu desejo de vingança (ou de premiação) é uma maneira sofisticada de idolatria; substitui o Criador pelo meu narciso, que - travestido de onipotência - pode, enfim, vingar-se dos dramas da vida.

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O Pai-Nosso, a única oração ensinada por Jesus, pede que seja feita a vontade de Deus (mas não a minha). Os outros pedidos da oração não incluem castigo aos inimigos, todavia perdão.

“Leandro: você não é religioso, por que se preocupa e analisa essas coisas?” A pergunta é válida. Sou humano. Como toda pessoa, tenho certo grau de empatia com outros humanos. Quando alguém culpa a vítima por uma tragédia, eu me incomodo. Exemplos: “Seu câncer é fruto da sua maldade”. “Você perdeu esta gravidez porque, em outra vida, não valorizou seus filhos.” “Esta depressão é por causa da sua negatividade e falta de amor ao próximo.” Eu tenho muita raiva quando alguém externo piora, com explicações aleatórias e imbecis, a dor do momento. O universo e Deus não trabalham para que eu seja glorificado e louvado. Imaginar isso é, simplesmente, alardear minha impotência: “Já que eu não posso me vingar e sou fraco, algum arcanjo fará isso no futuro e punirá quem me incomoda”. Ah, meu pobre Jó, se você não pode colocar o anzol no Leviatã, não obrigue Deus a fazê-lo. Segundo o texto do Pai-Nosso, a vontade de Deus é soberana. A mim resta invocar forças para ler melhor o sempre complexo desígnio divino. E, no mais, tenha esperança (que é uma virtude pequena, segundo o papa Francisco), mas obrigatória, tenaz e luminosa.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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