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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Devemos incentivar sonhos altos: a meta ousada pode não ser atingida, mas trará melhorias

Aos 50, nunca ganharemos medalha de ouro em atletismo, mas a atividade física regular será muito benéfica para tudo

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A cena foi real. Mudei detalhes, para impossibilitar o reconhecimento. Estava almoçando em casa de família amiga. O primogênito tinha 18 anos. Preparava-se para a faculdade. Fiz a pergunta esperada: “Qual curso?” Ele anunciou que desejava administração, mas... abaixou a cabeça, mantendo ar de contentamento. A mãe abriu um sorriso mais largo e explicou-me: “Na verdade, ele será modelo”. Eu fiquei em silêncio, buscando, em desespero, a frase melhor para aquela situação. Olhei o rapaz que sorria, a mãe embevecida e a mesa que aguardava algo. Respondi com uma onomatopeia: “Hummmm....” Foi o máximo que consegui diante daquela revelação. Ah, se eu pudesse adicionar uma foto do rapaz a esta crônica, para que os leitores imaginassem o tamanho da minha surpresa! Talvez eu pudesse anunciar, em seguida, seguindo o mesmo modelo, que eu, Leandro, tinha sido contratado para uma propaganda de xampu.

Sei que o universo dos modelos ficou muito diversificado nos últimos tempos. Alguns continuam seguindo os padrões de beleza e altura impressionantes. Muitos possuem o corpo perfeito. Há variedades ditadas pelo nosso anseio justo de inclusão: algumas pessoas superam, com carisma extremo, a ausência de outras qualidades. Lembrei-me do ator francês Jean-Paul Belmondo, longe de ser um Adônis, que tinha um talento pujante. Algumas mulheres já me disseram que preferem um rosto mais anguloso, talvez com imperfeições epiteliais, que mostre mais masculinidade, ao de um anjo renascentista oscilando pela androginia. Dizem que a Cleópatra real tinha um nariz distante do ideal clássico. Com inteligência aguda, seduziu dois dos mais poderosos homens do mundo romano: Júlio César e Marco Antônio. Gostos são elásticos e históricos. Brad Pitt e Gisele Bündchen são referências, não molduras absolutas.

Desfile do Emporio Armani na Semana de Moda de Milão em 15 de junho de 2024 Foto: Alberto Maddaloni/Reuters

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Não nasceu com a beleza da Naomi Campbell? Fugiu do padrão Tom Welling? Sua genética o distanciou de Cauã Reymond? Viu a série Bridgerton e entendeu que existe um abismo entre sua imagem no espelho e a de Regé-Jean Page, o duque Simon Basset? Não se preocupe! Carisma, charme, boas roupas, luz adequada, fotógrafo especial, inteligência, algum dinheiro e muita habilidade social podem fazer você brilhar no Instagram e nas festas. Não preciso dizer que tudo isso faltava ao rapaz apontado pela mãe como futuro modelo.

Saí consternado do almoço. Imaginei o tempo que aquele rebento, de genitora orgulhosa, gastaria, em vão, querendo furar as muralhas que o afastavam da Semana da Moda de Milão. No dia seguinte, narrei o caso ao meu sábio personal trainer, omitindo por ética os nomes. Nilson discordou da minha análise. Disse que eu pensava em Milão, Londres, Paris e Nova York. Eu projetava nos grandes centros criativos e suas exigências. Porém, havia outdoor nas pequenas rodovias, agências que precisavam vender camisetas para um shopping menor, camisarias populares que não escolheriam astros internacionais ou, sequer, estrelas brasileiras de primeira grandeza. Havia um espaço para o que, grosso modo, seria o “modelo de aldeia”. Em terra de cegos, o caolho teria tendência ao poder monárquico, reza um adágio.

Nilson pensava no rei da quermesse, na rainha do colégio, no rapaz que cede sua imagem para uma produtora de bonés caseiros. Entre Apolo e Quasímodo, existiria uma escadaria muito ampla. Eu mirava o Olimpo, mas ignorava as discretas colinas abaixo. Ele tinha razão.

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Ampliando meu questionamento: temos tal controle do futuro a ponto de determinar que alguém não deve dedicar-se a uma carreira porque, neste momento, achamos que lhe faltam os atributos necessários? Alguém poderia ter a mesma reação, em um jantar na Córsega, por volta de 1780 e dizer: “Este menino Napoleão quer ser líder militar, mas não tem condições para isso”. Talvez as mães antevejam Napoleões em excesso, e os críticos sejam cegos para aqueles em potencial. E lá estava uma criança baixa de onze anos, nascida fora dos centros de poder, claudicante em francês, sem recursos financeiros abundantes, sonhando em conquistar a Europa. Ganharíamos, imitando o amor materno, estimulando todos a serem tudo aquilo que sonhassem? Que controle do futuro nós temos para saber algo profético sobre qualidades atuais e demandas à frente?

Minha postura hoje é que devemos incentivar sonhos altos. A meta ousada pode não ser atingida, mas será um ponto de referência de melhorias. Não ganharemos prêmio Nobel, em inglês, se começarmos a estudar, aos 40 anos, a língua nova. Apesar disso, podemos melhorar tanto que adquiriremos habilidades, obtendo efeito claro na vida. Aos 50, nunca ganharemos medalha de ouro em atletismo, mas a atividade física regular será muito benéfica para tudo. Talvez você não encerre a existência como um Elon Musk, mas o planejamento financeiro continuará sendo vital para qualquer coisa abaixo dessa meta.

Em resumo: siga a carreira de modelo, sim. Para isso, faça esportes, aprenda línguas, use protetor solar, estude sobre roupas e afins. Sempre serão conhecimentos úteis, seja em Milão, seja em um outdoor em estrada vicinal, seja em um almoço caseiro. O importante é ser a melhor versão de si mesmo, munida de total esperança. O mundo trará sempre Waterloos em abundância...

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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