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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião | Dois amigos e um peixe

De tudo divergem quando a conversa é sobre política. Nada discordam quando se trata de futebol

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Imagine dois amigos parecidos na idade, altura e peso. No resto? Um é politizado. Lê tudo sobre cada novo problema em Brasília e (talvez nem o presidente consiga repetir a façanha) sabe de cor o nome de todos os ministros. Mais! Carlos conhece o custo político de cada ministério e das negociações envolvidas. Lê e sabe muito, pensa com fervor, considera quase todo mundo alienado. Carlos é um “animal político”.

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Rodrigo gosta de Carlos. São amigos há quase 20 anos. Torcem pelo mesmo time: o Santos. Ambos pertencem à mesma classe média. Nada falta de essencial, entretanto pouco sobra do dinheiro, fruto de uma vida em trabalho. Mas... Rodrigo detesta política. Focado no trabalho, amante do seu time, fã de cinema de ficção científica e fotógrafo amador, evita toda conversa sobre partidos. Nas campanhas polarizadas dos últimos anos, olhava com um democrático tédio para os dois campos envolvidos.

Rodrigo e Carlos contaminaram suas famílias. As fotos de Carlos manifestaram apoios políticos a cada eleição. As de Rodrigo mostravam pets e almoços em família.

Camisas de Pelé expostas na região de seu velório em 2022 Foto: Felipe Rau/Estadão

E... são amigos. Abraçaram-se às lágrimas, em 2004, no título do Peixe no Brasileirão. Em 2011, na Libertadores, passaram dias, flutuando em euforia, com a taça conquistada. A palavra Pelé produz um silêncio quase religioso entre eles. É o Rei e está no Céu, à visão dos dois amigos. Analisam, com zelo e paixão, a melhor defesa de João Paulo, Diógenes, Paulo Mazotti ou Vladimir. Nada discordam no futebol ou sobre qual seria a melhor marca de cerveja. De tudo divergem quando a conversa é sobre política.

– Você é um alienado, Rodrigo. Deveria ler o poema de Brecht sobre o analfabeto político!

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– Brecht? É um jogador alemão? Um novo reforço para a Vila Belmiro?

– Não tem jeito mesmo! Você é o típico inocente útil, o eleitor que só vota porque é obrigado!

Sim, Rodrigo só votava porque era obrigado. Ele nem conseguia entender como alguém, com mais de 70 anos, livre do ditame legal de ir a uma fila em um domingo de sol, preferia ir lá apertar teclas na urna. De outra sorte, Carlos colocava os pais, com mais de 80 anos, no carro e levava-os à zona eleitoral para garantir o voto deles. “Cada voto é um passo na caminhada da cidadania. Todo cidadão conta! Quem não vota concorda com o que está aí.” Carlos prosseguia doutrinando os pais, que aceitavam a carona e o discreto suborno de um almoço dominical com os netos, em troca do apoio ao candidato do filho.

Gostavam-se e tentavam evitar o tema da discórdia. Porém, era inevitável. A amizade sofria entre a indiferença olímpica de um e a paixão absoluta do outro. Era um desafio que causava até graça entre as esposas.

O argumento central de Rodrigo era o choque entre a realidade imediata e a macropolítica. Sim, como pessoa inteligente, ele entendia que leis e jogos de poder afetavam a realidade. No entanto, costumava pensar no mundo familiar e profissional; igualava quase todos que mandavam em Brasília. “Se X vencer, continuarei ajudando meu filho com as lições de física. Se Y vencer, irei com minha mulher ao Guarujá no verão. A vida segue e não depende do governo.” O argumento enervava Carlos até o limite. Era o sumo da alienação para ele, típico de uma classe média protegida que não entendia o valor das decisões sobre SUS e vacinas. O “alienado” comparava (a política) com um condomínio: havia síndicos simpáticos, antipáticos, evangélicos e ateus. A vida dele e da família, dentro do apartamento, prosseguia igual. Carlos ouvia e quase gritava. Como Rodrigo poderia comparar a complexidade de um país (habitado por quase 215 milhões, em dimensões continentais) com a mediocridade de um prédio na Pompeia, em São Paulo? A visão de Carlos descia do Monte Caburaí, em Roraima, até as margens geladas do Chuí, no Rio Grande do Sul. Rodrigo se limitava ao apartamento e era tranquilo.

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Um era tachado de alienado, inocente útil, indiferente à miséria humana. O outro era alcunhado de chato, catequista, autoritário. Ambos, de alguma forma, mereciam os apodos.

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O aniversário de 15 anos do filho mais velho de Carlos encontrou a dupla de amigos, já aproximada do rompimento. A divergência tinha chegado ao limite. Era insuportável a ambos a insistência do tema que os dividia. Carlos queria votos, e Rodrigo anelava pela paz. Mesmo assim, Rodrigo foi com a família à festa no salão do prédio do amigo. O abraço, ato frio, demonstrava que o obstáculo de tema era sentido por eles.

O primogênito de Carlos recebeu o presente de Rodrigo. Era uma caixa retangular bem embalada. Abriu com o tédio que os adolescentes sentem quando suspeitam de roupa como oferta. Rasgou o papel, enfastiado. Dentro, surpresa geral, uma camiseta do Santos, autografada por todos os jogadores. O cartão trazia: “Pelé é maior do que Maradona!”.

O regalo emocionou mais o pai do que o filho. Carlos passou a mão sobre as letras dos craques obtidas com esforço por Rodrigo. Olhou para o amigo e abraçou-o com uma força renovada. Ambos choraram, reconciliados. Havia a política e o negacionismo dela. Pairava sobre ambos o Rei Pelé. O Chuí fluía para o Caburaí. A vida, enfim, encontrava uma esperança afetiva no Peixe.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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