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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Irmã Josefa e a sentença biológica da menopausa a uma freira moderna

‘Não fui mãe por opção, agora não serei por impossibilidade’, refletiu a religiosa após a constatação de exames

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Foto do author Leandro Karnal

Irmã Josefa era uma religiosa de 48 anos. Sua vocação foi muito precoce e sempre se sentiu bem no colégio de freiras onde lecionava português. Durante o noviciado, uma colega tinha narrado, um pouco pudica, que havia manchado com sangue menstrual um lençol. A Mestra de Noviças sorriu de forma afável e explicou: “É um fato natural e não ofende a vontade de Deus. Nosso corpo é um dom. No seu caso, que pretende entrar na Congregação e fará voto de castidade, será uma lembrança mensal de que você poderia ser mãe, mas renunciou a isso para se entregar a mais pessoas com seu trabalho de professora e de freira. Uma vez por mês, Deus a lembrará que toda escolha implica perda. A ideia alegrou a jovem incomodada e trouxe uma paz beatífica para Josefa. Décadas depois do noviciado, tendo proferido seus votos solenes, a Irmã Josefa ainda sorria quando seu ciclo se anunciava. “Natural e divino, lembrança do que renunciei por amor ao Amor Primeiro” – ela pensava com certa poesia.

Quadro de Jan van Helmont, 'Portrait of the sisters of the convent of the Black Canon Augustinian nuns in Antwerp' Foto: Wikimedia

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Era o meio de setembro e a primavera se anunciava nas camélias diante da portaria do colégio. “O pólen afetaria a rinite da Madre, e a Irmã Imaculada teria menos dores nas articulações com o fim do inverno”, meditava ao andar. Só então se deu conta de algo novo: sua menstruação estava atrasada uma semana. Evitou apegar-se à ideia. Não era relevante. Riu internamente ao pensar que alguém pudesse supor que ela estaria grávida. A missa transcorreu normal, as aulas foram comuns. Na hora do último ofício da comunidade, pensou de novo no atraso inédito. Rezou, tranquilizou-se, tomou um chá de cidreira e adormeceu.

Passados alguns dias, abriu-se com a Superiora e marcaram uma médica que atendia o colégio. Irmã Josefa fizera faculdade e lia obras de literatura, considerava-se uma freira moderna e, mesmo assim, sentiu discreto constrangimento durante o exame. A doutora fez perguntas e solicitou sangue e urina como parte da avaliação. Alguns dias depois, o diagnóstico: a religiosa entrara na menopausa, de um tipo tranquilo, sem fogachos, angústias ou oscilações de humor. Simplesmente... não menstruaria mais.

Durante o terço de sábado, ao louvar a Mãe de Jesus muitas vezes, veio a ideia: “Nunca terei um filho”. Veja, querida leitora e estimado leitor, Josefa sempre foi feliz com sua vida e seus votos. Porém, de repente, permitiu-se um questionamento: “Eu não fui mãe por opção, agora não serei por impossibilidade”. O que tinha sido um voto livre se tornara uma sentença biológica.

O padre falou no sermão sobre o livre-arbítrio. Inteligente, Irmã Josefa contra-argumentava no escaninho da alma: “Que escolha eu tenho? Serei virtuosa por falta de oportunidade?” O fato natural e humano tinha trazido uma pequena serpente ao Éden da consagrada.

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Chegou a festa da Virgem das Dores, em 15 de setembro. A congregação de Irmã Josefa era muito dedicada à memória das agonias do Imaculado Coração de Maria. “Uma espada transpassará seu coração”, tinha profetizado o velho sacerdote em Jerusalém. Ao cantar o hino que falava da Mãe junto à cruz, “Stabat Mater”, Irmã Josefa chorou intensamente. As confreiras se admiraram da fé piedosa e intensa da colega, que vertia lágrimas ao contemplar a “Pietà”. Sim, ela tinha muita fé, sempre tivera. Hoje, no entanto, Josefa chorava porque, estranhamente, não teria a dor ou a alegria de um filho. Maria viu nascer, criou, angustiou-se, acompanhou o drama junto à Cruz. Por fim, contemplou o Filho ressuscitado. Ela, Josefa, nunca geraria, jamais educaria e seria privada de um rebento. O Deus que a lembrou por décadas que ela poderia ser mãe parecia se calar durante a menopausa. Ao que ela, de fato, tinha renunciado? Não engravidou quando poderia, jamais viveria a maternidade agora e lamentava esta nova fase estéril. Era uma videira seca, uma fonte que cessava de correr no monte, o solo árido de uma velhice longa com rosários intermináveis e alunos entediados.

Confessou-se ao padre na sexta. Considerava seus pensamentos recentes uma rebeldia enorme contra o Criador. O sacerdote, de costume muito sério, deixou escapar uma pequena risada. A penitente ficou escandalizada, por ver o padre Alexandre rir naquele momento sacramental. O presbítero falou da humanidade, dos limites dados pela existência no mundo, da misericórdia infinita de Jesus e do sorriso de Nossa Senhora para sua filha Josefa. Inundou a alma ressequida da freira com a água das colinas eternas e, quando conferiu a absolvição, Irmã Josefa voltara a nadar de braçadas amplas na água do seu batismo. Deus a amava (fértil ou não) e aceitava o sacrifício de vida, não de sangue tão somente. Reconciliada com seu corpo e seu Criador, Josefa dormiu profundamente. Fé sem regras, no seu duplo sentido, sentimento de fim de limites condicionais, maior liberdade: assim Josefa sentiu um véu subir e contemplou o mundo face a face. Ela vivia o deleite de tornar todos os seres seus filhos, dando-lhes um amplo abraço cósmico, em uma comunhão de esperança.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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