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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Leandro Karnal: Ouvir o medo pode ser sábio; ser dominado por ele, paralisante

Terrível dilema: sem medos, eu morro; com excesso deles, eu nunca vivo

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Atualização:

O medo é um mecanismo instintivo de defesa e protege-nos. O problema é que nem sempre ele é racional. Temos medo de coisas que não nos ferem, mas vamos tranquilamente ao encontro de situações perigosas. Exemplo: a chance de morrer em uma viagem de automóvel é imensamente maior do que em um avião. Eu encontro muitos que resistem a voar, mas poucos apresentam comportamentos nervosos ao assentarem o corpo em um carro.

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Alguém dirá: “Ah, mas o avião simboliza a falta de controle. O que eu poderia fazer se estivesse em uma aeronave em queda?” Sim, minha querida leitora, meu estimado leitor: nada! Porém, diante de um carro que capota, você poderia congelar o tempo, retirar-se da cena do acidente, sair com seus pertences e salvar-se?

O latim “medus” originou o termo em português e espanhol. A palavra latina, também para pavor, espalhou-se na França e na Itália como “peur” e “paura”. Curioso: o medo lusófono e espanhol é masculino. Em Paris e Roma, é feminino. “La peur” e “la paura” surgem no vocabulário ao estilo Os Trapalhões: “Que meda dela!” Na Grécia, era “fobos” e, com o pavor (deimos), acompanhavam o carro de guerra do pai: Ares/Marte. Para nós, a palavra fobia é superior ao medo, pois causa reações mais intensas.

Acidente aéreo ocorrido no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, em 2007 Foto: Evelson de Freitas/Estadão

Expus que o medo (ou a fobia) não era racional. Meu amigo Mario Sergio Cortella sofre de catsaridafobia, a aversão profunda a baratas. Ele já fez uma fala divertida sobre o tema. O filósofo reconhece que nunca se ouviu falar de um ser humano que tenha falecido por ser vítima de um ataque mortal de uma barata. É claro: associamos os insetos à falta de higiene. Creio que inexiste uma catsaridafilia, um amor expressivo pelos bichos nojentos. No entanto, quem tem aversão profunda a baratas parece sentir que elas estão olhando para o medroso ou movimentando-se no ambiente.

É inegável: o medo cria um vínculo entre quem teme e o objeto temido. O alvo da sua repulsa é mais notado por você do que por alguém indiferente a ele. As turbulências pelas quais atravesso quase diariamente nos voos não são destacadas por mim. Para alguém com horror aos voos, aerofobia, cada solavanco é sentido como uma tortura e sinal claro do fim de tudo. No meu caso, eu desço calmo de um voo com algumas instabilidades. No aeroporto, quando o motorista pergunta se foi boa a viagem, respondo: “Tranquila!” Um humano aerófobo desembarca ainda trêmulo, ofegante e diz à equipe de terra: “Quase morremos!” O medo e o afeto são os pais da percepção.

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Há o simples nojo, primo do medo. Minha mãe detestava encontrar cabelo em comida. Encontrou madeixas perdidas pelo Brasil todo, em Paris e em Milão. Eu, acostumado a não ver fios em mim, nunca os percebo nos pratos. Como as baratas voam até aos mais apavorados, aparentemente os fios caem nos pratos dos que expressam desgosto por eles. Ter medo é um ímã poderoso. O medo rege a política. Alguns votam por acreditarem muito nas boas ideias de um político. A maioria vota por medo do outro candidato. O pavor ampara alguns casamentos com frequência intensa: não está bom, mas tenho inquietudes com a mudança. A angústia segura alguém no emprego e dobra joelhos nas igrejas. Os hospitais estão perpassados de ansiedades.

Era sábia a frase da minha avó: “Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece”. O que tememos nos persegue como o fantasma do pai de Hamlet. “Meu coração temia o regicídio, odeio meu tio, desconfio da minha mãe e sou melancólico sobre o futuro”: é para mim que o fantasma confirma tudo. O príncipe da Dinamarca tomaria um bom chá com a minha avó, ambos desajustados pelas suas inquietações.

Irracional e poderoso: os receios fluem em nós mais do que reconhecemos. Tenho medo de que ninguém me chame para mais nada e, assim, aceito o excesso de convites sociais e profissionais. Sou covarde no quesito solidão; por isso, tolero situações e pessoas que ultrapassam o limite do razoável. Tenho anseios sobre a velhice e guardo sempre dinheiro. Terrível dilema: sem medos, eu morro; com excesso deles, eu nunca vivo.

Sem medo, Napoleão abandonou o posto de príncipe da ilha de Elba – um recanto paradisíaco da costa italiana – e foi à luta novamente. Com medo, terminou preso em uma ilha remota do Atlântico Sul, Santa Helena. Ouvir o medo pode ser sábio; ser dominado por ele, paralisante. Somos pusilânimes?

Como à Medusa, encará-lo pode petrificar. Não existe alternativa: meu medo me revela. O gesto mais duro para uma criança seria ver sob a cama e verificar que seu temor inexiste. É similar a se olhar no espelho, já adulto, confessando seus terrores mais densos. Ali se derretem o guerreiro e a guerreira. Ali o alfa vê sua cicatriz beta. No espelho, o monstro terrível se revela. Curioso que os generais do mundo clássico colocavam a imagem da Medusa na couraça ou no escudo, para apavorar inimigos. Solução sábia: carregar os medos e seguir na batalha é uma estratégia de força.

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Encare seu medo. Converse com seus fantasmas. Quem nada teme é irresponsável. O temor é a fronteira entre Deus e o homem. Tenho esperança de responder com calma à pergunta: “Eu tenho medo do quê?”.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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