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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião | O novo dólar

Nota de US$ 20 deve ter a abolicionista Harriet Tubman em sua estampa

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Por Leandro Karnal

Alguns devem pensar que o dinheiro dos Estados Unidos emergiu pronto da explosão do Big Bang. Todavia, os próximos anos devem testemunhar uma mudança no rosto da moeda dos EUA. O dólar deve seu nome a uma corruptela do thaler, uma das primeiras moedas de prata de grande tamanho cunhadas na Boêmia do século 16. O thaler passou a ser sinônimo de moeda valiosa e ultrapassou as fronteiras do vale em que foi criado originalmente. Era possível encontrá-las por todo o Velho Mundo e, em língua inglesa, ela virou o dollar, quase como uma gíria como “grana” ou “dindim” nos dias atuais. Era usada para expressar dinheiro.

Modelo da nota de 20 dólares com Harriet Tubman Foto: US Treasury

A Inglaterra já usava libras quando isso ocorreu. Por lei, entretanto, a velha Albion não permitia que sua própria moeda saísse das ilhas britânicas, nem mesmo para suas colônias. Por isso, no século 18, era muito difícil encontrar libras e shillings circulando. A moeda que surgia de forma mais comum nas colônias britânicas do Novo Mundo era... mexicana! Ah, a ironia da História! O México, também desde o século 16, tinha sua própria casa da moeda e cunhava os valiosos “reales de a ocho”, um peso de prata que equivalia a 8 unidades de menor valor, chamada real. Esse “spanish dollar”, como era chamado nas 13 colônias, a “Grana espanhola”, era uma das poucas moedas circulantes por ali. No início do século 18, a crise da falta de moeda estimulou o jovem Benjamin Franklin a escrever um manifesto que reclamava como a situação impedia a economia local de se desenvolver. Além disso, ele passou a imprimir dinheiro, na forma de vales em papel. A Coroa proibiu essa prática também. O ressentimento dessa medida estava entre os fatores listados para a guerra de independência pouco tempo depois. Guerras custam dinheiro e isso a colônia não tinha, já vimos. Solução: imprimir dinheiro. O “continental” (nome dado em homenagem ao Congresso Continental que declarara a independência), em sua intenção inicial, se baseava no valor de um “dólar espanhol”. As cédulas vinham com o valor estabelecido em um pequeno texto que dizia algo como: este pedaço de papel vale 1, 10 ou 20 dólares. Os mais velhos entre nós, leitores, se lembrarão da URV, a unidade que estabelecia quanto valia o real nos tempos que antecederam a implementação de nossa moeda, nos longínquos anos 1990, quando achávamos que vivíamos uma crise. Imprimiu-se tanto dólar de papel para sustentar o esforço de guerra que eles se desvalorizaram muito rápido. No fim do conflito, já corria o ditado: “Isso vale tão pouco quanto um continental”. As cédulas foram abandonadas e, em 1792, estipulou-se a criação efetiva do dólar americano. Nome alemão e referências espanholas, a moeda estadunidense deveria ser feita apenas e tão somente em metal, não mais em papel. Foi uma das primeiras do mundo a se basear em um sistema centesimal, facilitando a compreensão de suas frações (lembram-se do real de oito?). As efígies das primeiras moedas recém-nascidas eram alegorias da liberdade, da vitória e outros valores. Jamais pessoas. Por quase um século, os americanos tiveram apenas moedas e não mais cédulas circulando. Precisaram de outro conflito para voltar a imprimir dinheiro: a Guerra da Secessão (1861 a 1865), que rachou o país em dois, Sul e Norte, em torno de várias questões. Tanto um lado quanto o outro, precisando desesperadamente de recursos, voltaram a imprimir dinheiro. O do Norte, criado pelo secretário de Finanças de Lincoln, Salmon P. Chase, era verde e, na sua nota de um dólar, trazia a efígie nada modesta de... Chase! Como na guerra anterior, rapidamente a cédula se desvalorizou e, ao fim do conflito, valia um terço do seu valor de face. Isso porque a cédula verde era uma promessa, um bônus de guerra, que poderia ser resgatado quando os canhões silenciassem. Pior ocorreu com a moeda sulista, os “dixies”, que se desvalorizaram muito mais e, ao fim das batalhas, se tornaram pedaços de papel colorido com o fim do país e a reintegração ao norte. A decisão de quem deve ou não estampar a cédula de dólar é atribuição do secretário de Tesouro. Critério é que a pessoa deve ser alguém cujo valor de face (literalmente) seja conhecido da história americana como personagem confiável. Por isso, há ex-presidentes e personalidades como Benjamin Franklin. Mas muita gente já entrou e saiu dessa galeria. Ela não é nem nunca foi fixa: só não podem mostrar pessoas vivas. Daí o anúncio em 2016 de que, em 2020, as notas de 20 dólares deixariam de estampar o presidente Andrew Jackson, um controverso governante que era escravista, por uma notória abolicionista, Harriet Tubman. A primeira mulher negra (moedas de um dólar mostram, desde 2000, Sacagewa; ainda no século 19, por curto período, a primeira-dama Martha Washington estampou a nota de um “dólar de prata”) em uma moeda norte-americana. Jackson não reclamaria: ele era um feroz opositor das cédulas e de bancos poderosos! A administração Trump anunciou que o custo seria alto e que postergaria a decisão por, no mínimo, dez anos. Biden, decidido a desfazer a herança do antecessor, anunciou que iniciaria a substituição. Viram? Não dói mudar uma efígie em uma nota. Especialmente, porque elas estampam valores de época. E nossos tempos podem e devem ser mais plurais. A esperança é associada ao verde, cor tradicional dos dólares. É preciso ter ambos, dólares e esperança.  É HISTORIADOR E ESCRITOR, AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’, ENTRE OUTROS

Opinião por Leandro Karnal
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