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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião | O que me impede de transformar a aldeia que habito em vez de invejar a do lado?

Você é invejoso e ressentido. Eu sou invejoso e ressentido. O papa é. Elon Musk é. Impossível não ser

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Viajante do meu Brasil, estive em uma cidade de Santa Catarina, para palestrar. O motorista nos pegou no aeroporto de Chapecó. Fomos a um município mais ao oeste. Na volta, reclamou dos buracos e problemas em uma estrada. Comentou: “Só asfaltam bem até Chapecó. Depois, abandonam. Só existem coisas boas entre Chapecó e o litoral...”.

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O ressentimento é o que Espinosa e outros chamariam de “paixão triste”. Meu corpo e minha alma (no sentido do filósofo holandês) possuem conatus, ou seja, um esforço para continuar vivos. A potência para existir está na nossa essência. Quando o corpo revela seu conatus, chama-o de apetite. Quando é a alma, mostra-se como desejo. Apetites e desejos são expressões vitais. Enquanto os temos, a vida percorre nosso ser.

Nossa capacidade de existir dialoga com desejo, alegria e tristeza. Ao meu redor, eu, um pedaço finito do universo, sou confrontado por muitas coisas maiores e mais fortes. Quando aumenta minha potência de agir, sou alegre; quando ela escasseia, sou triste. Aqui, a teoria de Espinosa servirá muito à tradição clínica sobre a potência do sujeito.

'Pinheiros no Pântano', de Van Gogh Foto: 'Pinheiros no Pântano', de Van Gogh (1884)/Museu Van Gogh

A (potência) de existir do outro parece maior. Ao meu redor, há pessoas, famílias, cidades e países mais fortes, mais harmônicos, mais bonitos, mais ricos. Isso leva ao duplo diálogo entre inveja e ressentimento. Recebi menos do que eu gostaria. Outros, e parece que isso é aleatório, receberam mais. O mundo brilha além de Chapecó. Infelizmente, nasci aquém, menos, menor... Isso é uma paixão triste e cáustica que me fará rancoroso com o mundo imaginado além das fronteiras de Chapecó.

Inimigas da potência de criar, ferrugem lenta e inexorável do projeto de seguir adiante, as paixões tristes são um verdadeiro mal do século da vida pública. Inveja e ressentimento constroem posts, multiplicam protestos, elaboram teorias e continuam corroendo o que poderia ser bom.

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Você é invejoso e ressentido. Eu sou invejoso e ressentido. O papa é. Elon Musk é. Impossível não ser. O mais importante – umas se conhecem mais do que outras. Por medo ou virtude, algumas se controlam de forma distinta. Outros se deixam dominar. Os que sorriem quando gostariam de esmurrar são chamados de calmos. Variam a intensidade e o grau de controle e de autoconhecimento. O que é constante? A lava quente corre sob toda a crosta terrestre, sob cada pessoa. Há terrenos com vulcões e terremotos; há os muito estáveis. Sob todos, a pressão poderosa da nossa natureza agressiva. Não é Hobbes ressuscitado. É experiência de vida. Aprendi a temer gente tranquila tanto quanto aprendi a acudir quando houver silêncio de um grupo de crianças na sala ao lado.

“Conhece a ti mesmo” brilhou no templo de Delfos e na calva socrática. Como usar o conhecimento contra a paixão triste ressentida?

O primeiro passo é pensar que alguns dados tão somente escondem minha dor. Será mesmo que todas as estradas são perfeitas do outro lado? Minha dor escondeu-se em uma convicção de dados confusos? Trazer a luz do conhecimento para iluminar cada ponto sombreado da minha consciência pode ser um bom começo.

Segundo: se há mais felicidade daquele lado, por que eu permaneço neste? Melhor – o que me impede de transformar a aldeia que habito em vez de invejar a do lado?

Terceiro: o que explica o brilho maior do vizinho é apenas a sorte? O acaso genético e social? Haverá algo na rotina dele que me ajude a compreender de outra forma? Como paixões “envergonhadas”, inveja e ressentimento costumam mascarar-se sob outros conceitos, geralmente mais elevados. Injustiça existe. Apesar disso, nem sempre explica tudo.

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Como paixões tristes, inveja e ressentimento esvaziam a potência do indivíduo. Trata-se de refazer protagonismo não para pensar o absurdo de que tudo depende de você ou que seu desejo muda o universo, todavia para reinserir força e energia no seu projeto biográfico. O mundo se apresenta assim, injusto inclusive. O que eu faço a partir do dado real que percebo ao meu redor? Como me incluo? De que forma abandono a posição de observador amargurado e entro no jogo?

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O mais dramático da tristeza ressentida é que ela se construiu como uma zona de conforto fabulosa. É uma sala VIP da inatividade. “O jogo é de cartas marcadas e nada pode ser feito” esconde muita coisa. Sim, o jogo tem alguns aspectos bons e outros completamente equivocados. Se é um jogo ruim, não fique chorando ao lado dos jogadores. Afaste-se, crie o seu próprio, mude aquele: qualquer coisa, mas faça.

O ano de 2024 chegará ao seu segundo mês. As promessas de ano-novo já mostram ferrugem precoce. Daqui a pouco, o carnaval, a Páscoa... em seguida, o meio do ano e, em um piscar de olhos, Natal e ano-novo. Esse texto vai para um motorista, no desejo de que ele não se aposente daqui a 30 anos, dizendo que os buracos eram intensos do lado dele, mas o Paraíso algumas cidades além. O primeiro conselho de um coach foi quando Deus disse a Adão, na pior hora deste: “Você vai ganhar o pão com o suor do seu rosto”. Coach honesto, o Criador não prometeu mudança de mentalidade – sugeriu trabalho duro. Esperança com suor tapa buracos da paixão ressentida.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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