O TikTok surgiu em 2016. Na China, começou como uma mídia social para trechos curtos de música. De 500 milhões de usuários em 2018, dobrou para um bilhão no ano seguinte. O senegalês naturalizado italiano Khaby Lame (nascido em 2000) é um exemplo do sucesso. Sem falar nada, mostra o espanto diante das complicações do mundo e como tudo poderia ser mais fácil. Carismático, tem mais de 160 milhões de seguidores e contratos com várias empresas. Enriqueceu-se.
Existe uma tendência contínua. No passado, a poesia épica foi cedendo primazia ao romance, mais curto. A velocidade e a diluição do foco contemporâneo indicam que o mais sintético alcança mais gente. Vistos no trânsito ou no elevador, os vídeos de poucos segundos podem proporcionar uma experiência de início e fim mais palatável do que um filme longo. O TikTok também retalha cenas de séries antigas. A experiência deve caber em uma curta viagem no Uber. O acesso é aleatório, rápido e deve preencher a sede de novidades, suprir o vício cerebral de dopamina e combater o tédio. Os hormônios da felicidade funcionam com doses de humor e criatividade, mas que durem alguns minutos, no máximo.
Navegar pelos vídeos do TikTok é uma lição sobre o mundo contemporâneo. Alguns conteúdos são piadas simples; outros navegam na onda da polarização política; existem informações curiosas e até certas iniciativas culturais mais elaboradas. Se, no começo, vídeos de dança dominavam, isso não é a tônica hodierna. Atende usuários ansiosos, capazes de passar adiante a qualquer queda de velocidade ou de interesse. Tudo deve ser muito rápido.
Se você é professor ou pai, recomendo que veja vídeos ali. O problema é que o algoritmo vai indicar conteúdos do seu gosto, em poucos minutos, mas não o que seu filho ou aluno vê. Toda mostra será um pouco viciada. Seria bom pedir ao jovem que revelasse, no celular dele, o que aparece como vídeo. Isso será um exemplo sólido do que aumenta a pupila daquela pessoa.
Vou dar um exemplo. Num dia, em algum aeroporto do planeta, vi um vídeo no TikTok com a seguinte estrutura: uma conversa de WhatsApp com uma cena de atrito. Eram uma sogra e uma nora discutindo quem iria no banco da frente ao lado do marido/filho. Um clássico choque da dupla que já animava Molière: a mãe do marido e a esposa. Fiquei interessado: parecia um novo tipo de novela, narrado no WhatsApp, com recursos simples e uma moral tradicional. Tratava-se de uma forma curtíssima de drama televisivo reduzido a dois minutos. Achei muito interessante. Pareciam narrativas falsas, produzidas para criar ódio de sogra, já que há mais usuárias de TikTok que sejam noras. Sogras (mais velhas) estariam no Facebook, onde provavelmente são heroínas.
Meu celular entendeu a mensagem e passei a ser inundado de “conversas de WhatsApp” pelo TikTok. Surgiram versões em vídeo com atores, inclusive. Moral básica: o que é meu é meu (não invada minha piscina, sítio ou use minha roupa); minha família é minha mulher/marido e meus filhos (sem cunhadas); vizinhos folgados são abomináveis; mulher deve cuidar da sua casa; homens devem ser fiéis, etc. Um folhetim com traços de conservadorismo e provocadores de raiva no leitor/visualizador. Curtos excertos morais, com tragédias pequeno-burguesas, ao melhor estilo de teatro de Vaudeville: entretenimento rápido, com confusões familiares, muito humor e música.
Veja como funciona a chamada circularidade cultural. No teatro de Vaudeville, que fazia sucesso no início do século 20, nos EUA, despontou um comediante bastante expressivo: Buster Keaton (1895-1966). O nome-apelido “buster” era de bom apelo (com significado de cara, espertinho ou até otário). Dos palcos populares, ele passou ao cinema mudo como um grande ator e diretor. O filme A General (1926) tornou-se um clássico do humor no cinema. Orson Welles considerava um dos maiores filmes já feitos na história. O cinema incorporou o teatro popular. Da mesma forma, existe um diálogo entre o improviso rápido do stand-up com o TikTok. Os artistas de maior sucesso em comédias de improviso, com piadas rápidas, celebram seus êxitos na rede. Fazer sucesso nos teatros com humor nasce e abastece o TikTok.
Vi, em fevereiro de 2024, um Macbeth de quase três horas em São Paulo, sem intervalo. Ah, o tempo e o cérebro... Quando Shakespeare encenava suas peças, a inclusão de certas “vulgaridades” (como a cena do porteiro na obra citada) fazia algumas pessoas torcerem o nariz. O tom “popular” shakespeariano causou críticas pesadas até no Iluminismo, por Voltaire, por exemplo. Em todos os momentos, alguém lamenta o momento terrível da arte atual e compara com as boas produções de outros tempos. Não estou comparando Shakespeare e TikTok. Penso na mudança do tempo e do prazer cerebral. Emergem as velhas questões de sempre: um “haicai” japonês tem dezessete sílabas poéticas. A Divina Comédia, de Dante, tem 14.233 versos. Somos a geração que ainda pode comparar essas diversas formas. Qual é a sua esperança de futuro?
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