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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O velho professor que suspira e, por ter boletos, apenas cumpre o que lhe é pedido

‘Por quais motivos roubar é errado?’ - ele aceitaria todas as respostas. Debateria com os alunos, entretanto todos estariam certos. Pensou nos boletos, mais uma vez

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O velho professor de literatura separou um trecho do Padre Vieira para a apostila do ensino médio. Abriu as obras escolhidas a esmo e esbarrou no Sermão do Bom Ladrão, pregado em 1655. Não seria possível fazer os alunos lerem toda a peça barroca. Ele selecionou apenas um parágrafo e colocou no arquivo. “Suponho finalmente que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua miséria ou escusa ou alivia o seu pecado, como diz Salomão (...) O ladrão que furta para comer não vai nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno (...) Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem esse título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. – Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões e começou a bradar: – Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos (...)”

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A coordenadora viu o arquivo e sugeriu que fosse encurtado. Era muito longo e difícil. O velho professor já tinha ajustado as citações em latim. Cortou mais, eliminou nomes, diminuiu. A mesma coordenadora pediu que ele fizesse uma síntese, antes do trecho, para facilitar aos alunos. O velho professor suspirou e, por ter boletos, cumpriu o pedido.

O novo texto apresentava uma citação de apenas cinco linhas de Vieira. Antes, aparecia a explicação: “O pregador jesuíta distingue dois tipos de ladrão: os que roubam para obter algo para si, agindo por causa da sua pobreza, e aqueles que, protegidos pelo manto do Estado, roubam cidades e reinos inteiros. Estes últimos seriam os piores. Para isso, cita Salomão, São Basílio Magno e Diógenes”.

A coordenadora leu e disse que não precisava citar os autores, como Diógenes. “Quem sabe este nome? E... Diógenes não cai no Enem.” O velho educador cortou do sermão e do resumo o filósofo. Aproveitou e diminuiu ainda mais a apresentação.

“Padre Vieira diz que há dois tipos de ladrão: o que rouba em pequenas quantidades e o que rouba por ser administrador e político. O segundo tipo é o pior.”

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A coordenadora bradou: “O senhor está louco? Temos filhos de deputados na escola. O cunhado do prefeito é o diretor. Vão dizer que estamos mandando indiretas. Existe muita vigilância sobre nosso trabalho”. Ela disse ainda: “Como podemos ensinar Vieira, sem perturbar nossos alunos e os pais?”

Era um desafio. O professor, velho e com boletos, pediu um dia para reelaborar o material. Dedicou algum tempo em casa e, na manhã seguinte, trouxe a versão definitiva. A apostila veio assim:

“Barroco: Padre Antônio Vieira. Português. Pregava sermões. Exemplo: O Bom Ladrão. Síntese: roubar é errado”.

A partir dos ‘Sermões’ do Padre Vieira, as idiossincrasias da sociedade contemporânea Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A coordenadora leu o texto e iluminou-se com um sorriso: “Muito melhor! Os alunos entenderão, o conteúdo está correto, transmite nossos valores pedagógicos e não surgirão protestos. Meus parabéns!”

O mestre olhou de forma melancólica. Tinha conseguido manter o emprego. Pensou em uma prova de escolha simples para a avaliação: “Quem foi o grande nome do Barroco colonial? a) Padre Marcelo Rossi; b) Padre Zezinho; c) Padre Júlio Lancellotti; d) Padre Fábio de Melo; e) Padre Antônio Vieira”. Refletiu mais. Alguns pais reclamariam do nome do Padre Lancellotti. Substituiria por c) Jojô Todynho. Mas... e se alguém pensasse que ele estava sendo debochado por incluir Jojô? Seria então melhor colocar Padre Antônio Maria ou Padre Feijó, mas o professor de história poderia acusá-lo de interferência em seara alheia. Seria Padre Antônio Maria mesmo. Precisava de uma questão dissertativa. Era norma da escola. Criou mentalmente a prova, perguntando: “Diga, com suas palavras, por quais motivos roubar é errado”. Aceitaria todas as respostas. Debateria com os alunos, entretanto todos estariam certos. Pensou nos boletos, mais uma vez.

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Pela noite, beijou a esposa e sonhou. Jesus, na cruz, absolvia Dimas, o bom ladrão: “Ainda hoje estarás comigo no Paraíso”. Depois, olhava com raiva para a outra cruz e recriminava o condenado nela: era ele, o velho professor, que se tornara o mau ladrão. No Calvário, irritados, Maria, João, Madalena e o Padre Vieira amaldiçoavam o literato crucificado. Que pesadelo! No dia seguinte, foi dar aula. Tinha contra si Jesus e Vieira, mas estava salvando seus boletos, graças àquele resumo. Sorriu, com esperança renovada no código de barras de cada conta pendente. “Judas precisou de 30 moedas apenas... queria ver o Iscariotes pagar água e luz todo mês para sempre.”

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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