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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|‘Quando ficamos órfãos, temos saudade de tudo, inclusive das contradições’

Existe um modelo superior imaginado no discurso, mas, na hora da prática, inverte-se tudo

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Existe uma tradição divertida na minha família, a partir de um discurso contraditório da minha mãe. Em todos os restaurantes, ela identificava um prato com peixe no cardápio. Realizava sempre uma fala sobre a leveza dos pescados, do caráter saudável da escolha e como se deliciava com a opção. Havendo tempo, ainda narrava que meu avô pescava e trazia peixes frescos para casa. “Peixe e salada! Não preciso de mais nada!” - encerrava.

Salvador Mallo (Antonio Banderas) passeia com sua mãe, Jacinta (Julieta Serrano), em 'Dor e Glória', longa de Pedro Almodóvar.  Foto: Universal Studios/Divulgação

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Gente nova entre os Karnais imaginava que, logo após esse louvor intenso, haveria o pedido correspondente. Aí entra a ambiguidade do humano. Após a defesa, ela dizia querer uma picanha ou outra carne vermelha. Já tinha comido peixe recentemente e quereria variar. Isso se repetia em todos os restaurantes: louvor aos animais que nadam e consumo daqueles que mugem.

Nós já sabíamos da retórica dela. Por vezes, já indicávamos as opções bovinas (ela não gostava de frango), antes de ela terminar a celebração da fauna aquática. Contrariada, Dona Jacyr terminava os elogios e, só então, escolhia a carne. Que não atropelassem a enunciação das virtudes das escamas. Era uma etapa necessária, antes do consumo do desejo real.

Toda família tem destas histórias: piadas, frases e contradições. Faz parte do “familieto”, o dialeto que só os que compartilham a mesma casa, sangue ou sobrenome conhecem. Minha mãe faleceu em 2017. Quando os irmãos se reúnem novamente, costumamos elogiar os peixes da casa. Eu sigo o protocolo, porém - curiosamente - gosto muito de pedir um indivíduo do cardume. Rimos, diante dos cardápios, ao lembrar nossa genitora. Sentimos muito a falta dela. Quisera eu oferecer-lhe inúmeros salmões, abadejos, robalos, tambaquis, pirarucus, pintados, trutas, arenques, atuns e bacalhaus, para que ela pudesse nos falar dos benefícios extraordinários de cada um antes de indicar um bife acebolado de alcatra. Quando ficamos órfãos, temos saudade de tudo, inclusive das contradições.

Incongruências são parte da nossa espécie. Vejo pessoas louvando a família tradicional, o caráter sagrado do matrimônio, mas estão no terceiro casamento, sem terem cumprido os votos de fidelidade. Exaltam a beleza do núcleo familiar, contudo optam, na prática, por outras fontes de proteína. Existe um modelo superior imaginado no discurso, mas, na hora da prática, inverte-se tudo. Conforme minha mãe à mesa, não comem aquilo que louvam. Combinar paladar real e discurso moral é um desafio. Esperança de coerência?

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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