Quando há dor, tomamos remédios. As drogas com efeito sedativo e analgésico fortes são chamadas de opioides. Morfina, Tramadol, Oxicodona e outros são necessários em alguns casos.
Vamos ampliar: a angústia física demandou algo químico que a atenuasse. E a dor de existir? A dor da solidão, do envelhecimento, do fracasso, da angústia financeira, dos medos com sua família? Como são os opioides existenciais?
Existir implica medo. Ele tende a crescer em um mundo violento. Ele dispara com a perda da autonomia. Eis a vida como ela é, expressão do escritor Nelson Rodrigues. Quais os medicamentos possíveis?

Sem ofender ninguém, o mais comum é a religião. Foi definida como o ópio do povo, mas quero ressaltar que o marxismo é um analgésico ainda mais potente. Como funciona? Eu fui criado por um Deus de amor, ele me protege, vai me dar vida eterna feliz junto a quem amo. Não! Grita o militante marxista! A única chance de felicidade é a revolução, a eliminação da burguesia e o salto para o estágio sem opressão, o almejado comunismo. Perceberam? Posso considerar os dois opioides, sem querer atacar a fé religiosa ou o marxismo. Ambas prometem o Paraíso, ambas possuem livro sagrado, ambas valorizam o martírio e as duas formas diminuem as dores intensas de viver em um mundo sem Deus ou sem classes sociais.
Não elimine sua crença, ela é válida. Apenas se permita imaginar: e se isso for tudo? Se não houver um além? Se o único mundo possível for este? Permita-se o exercício de viver sem elementos atenuantes de dor. Vale o mesmo para a esquerda: e se a condição humana for esta e cada novo gesto revolucionário apenas criar um outro tipo de ditadura, igualmente excludente e violenta? Não tenho provas do Paraíso Celestial e muito menos do Paraíso Comunista. É justo poder imaginar que nasceram de desajustes pessoais e sociais. Não seria impossível pensar que são opioides, ambos.
Então, existem céticos que se entregam à ciência. Pode ser uma forma de lidar com a dor? Imaginar que o progresso virá dos laboratórios e do método científico? Bem, a cada novo remédio real parece surgir uma doença inovadora. Para toda facilidade tecnológica, devastamos e inviabilizamos o planeta Terra um pouco mais. Nesta altura do século 21, estamos muito melhores do que em 1950? Há controvérsias. No mínimo, a ciência é um remédio com muitos efeitos colaterais, mesmo reconhecendo as coisas positivas que ela traz.
Sou amado pela minha família e pelos amigos próximos. Sim, existem pessoas que gostam de você e de mim. Amado? A palavra já foi dita, mas... você a submeteria a um escrutínio duro? Você já foi amado por pessoas e depois separou ou rompeu. Algumas ex-amadas ou ex-amados viraram inimigas/os totais. Há seres que processam pessoas para as quais já disseram “Eu te amo”. É permitido duvidar do opioide amor. Existe, mas podemos supor que seus efeitos sejam passageiros.
Não abandone sua fé em Deus ou na Revolução. Não abra mão da sua crença iluminista no progresso infinito do conhecimento humano. Apegue-se ao amor sincero de quem o cerca. Apenas, imagine o que seria sua vida sem essas crenças pelo espaço curto de um texto. Em não havendo Deus, falhando a alternativa da esquerda, tornando o progresso científico mais uma demanda por lucro do que progresso humano e quebrando o delicado verniz do que chamamos afeto, resta o quê? “E Agora José?” Se a festa acabar e você se olhar no espelho nu e sem poder usar suas pílulas milagrosas?
Mudo o foco. Seu amor aos gatos e cachorros nasce da capacidade de ver nesses mamíferos seres entregues ao momento. O sono felino nunca é interrompido pelo boleto que vencerá. A entrega canina à comida é total e plena. O animal que quer te lamber com entrega filial nunca vai acusar sua pessoa de tê-lo sequestrado da mãe legítima ou de ter sido instrumentalizado para sua solidão. Ele sempre estará inteiramente ali, no momento. Seres estoicos, não vivem a angústia do passado nem a ansiedade do futuro. Seu cachorro e seu gato nunca precisarão de opioides existenciais porque não conhecem a metafísica. No máximo, ao final da sua vida feliz, receberão algo para aplacar a única dor possível deles: a física. Amamos nossos animais por isso? São um patamar inatingível de vida feliz?
Conseguiríamos viver um dia com as seguintes convicções: 1) Somos feitos de matéria oxidável, morreremos e nada existirá depois disso. 2) Este mundo é tudo o que vemos e sentimos. Nada há além dele. 3) Não existe alma, Deus, Céu, Paraíso. 4) A sociedade é ruim, egoísta e desigual. Pode melhorar topicamente, mas é um verniz. Nunca atingiremos um progresso real. 5) A ciência resolve alguns problemas e cria outros piores. 6) Cada dia encurta o prazo para o fim. 7) Não faremos falta no mundo quando partirmos. 8) Tudo o que construímos e acumulamos vai se desfazer na mão de herdeiros indiferentes à nossa memória. Consegue?
Conviver com essas e outras questões seria olhar o mundo como ele é, sem opioides. Encarar tais coisas exigiria um espírito muito sábio. Posso apenas pensar: se há dor e existe um remédio que a diminui, por que não tomar? A solidão absoluta é possível para deuses ou para feras, dizia Aristóteles. Você é deus? É um simpático animal? Não, então tome doses de esperança ou... decida encerrar seus medicamentos. Você aguenta?