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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião | Reserva Natural

Livro aumenta a felicidade de quem considera textos uma escada para o empíreo

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Por Leandro Karnal

Conheço Rodrigo Lacerda desde o primeiro romance, O Mistério do Leão Rampante (prêmio Jabuti em 1996). Acompanhei sua carreira de carioca transplantado para a Pauliceia e aprendi sobre seu estilo a cada novo livro. Compartilhamos o afeto por William Shakespeare que despertou a inspiração para o já citado romance de estreia e Hamlet ou Amleto? - Shakespeare para Jovens Curiosos e Adultos Preguiçosos. Há, também, um texto sobre o rei Lear no livro O Fazedor de Velhos.  Recebi, há pouco, a nova obra do escritor: Reserva Natural (Companhia das Letras, 2018). Atenção leitores: velha superstição entre autores (nunca comprovada) é que nunca se deve dizer “o último livro do autor”, apenas o mais recente, pois o vocábulo último pode atrair a “indesejada” que fará, de fato, aquele texto ser o derradeiro. Gosto muito de coletâneas de contos , pois o tamanho da modalidade citada permite a vivência da literatura em apenas uma leitura, sem interrupção. Diferentemente de um romance que consome dias ou semanas, o conto é apreendido em uma sentada. Pegamos o texto, entramos no universo da narração, ficamos próximos das personagens e nos despedimos dentro de um mesmo período. O conto é um microcosmo quase completo do mundo ficcional. Em um hausto, sorvemos toda a lufada da carga emocional do autor. Reserva Natural trata da relação dos homens com o meio natural e entre si. Os dez contos são divididos em duas unidades conceituais: território e fauna. No primeiro, que dá nome ao livro, um grupo narra memórias em meio a um ambiente mais selvagem. Uma mãe-tamanduá e seu filhote atacam cupins e a descrição do evento noturno é uma pérola cenográfica que merece, por si, a leitura do livro. Tal como o último conto, Metástase e também Santuário da Lagoinha, existe uma reflexão social projetada no mundo natural, como uma forma de entender a cultura por meio da lógica da natureza. Aliás, percorrer as 183 páginas do livro é aprender sobre a luz dos vaga-lumes, o mundo das orquídeas e a capacidade das plantas de atrair insetos com a engenharia maliciosa das flores. Ao término da leitura, passei a pensar nos lírios do vaso a minha frente como políticos astutos cofiando seus bigodes de pólen.  Há um mérito específico na obra. A polifonia de vozes constrói cada personagem e cada situação com uma forma de configuração narrativa, desde o fluxo de consciência clássico até trechos sintéticos de linguagem de WhatsApp no conto Energia. O conto Concurso reúne trechos de textos enviados para uma disputa literária e, tal como em Tia Júlia e o Escrevinhador (Vargas Llosa), o escritor consegue manter diferenças de narrativas notáveis. O reforço da multiplicidade criativa é feito pela mudança de tipos de letras. De repente, surgem anotações esparsas de um autor para uma possível futura obra. Caracterizando um caderno provisório de rabiscos, o conto ainda apresenta desenhos às margens, como parte de um devaneio, sem um fio condutor claro além da inteligência de uma composição em mosaico. No conto Paraíso, uma médica acima do peso e fascinada por sapatos e doces apresenta uma sensível e divertida percepção do mundo e do corpo. Com um misto de humor e amargura, Dora conclui que “os tarados são presos ou internados, eu, mulher gorda, sou ridicularizada”. Mais adiante, ela acrescenta: “O imaginário é uma fonte de prazer inesgotável, muito mais cheia de possibilidades que o sexo a dois, ainda mais quando se pesa cento e quatro quilos. O imaginário é tudo”, conclui entre resignada e feliz a nossa onanista. A mídia seria, para ela, o esforço pela limpeza étnica de todos os feios, dentuços, narigudos e, acima de tudo, dos gordos. O conto derradeiro (Metástase) encerra com um parágrafo síntese de todo o pensamento que percorre o livro: “Querendo ou não, em conjunto somos feito o idiota que, no meio da tempestade, com o naufrágio iminente, encontra o rombo no casco do navio e se diverte com o esguicho de água, sem avisar ninguém, na mais risonha inconsequência”. Valorizo autores como Rodrigo Lacerda que não imaginam a cena de um encontro de um casal no restaurante como alegoria máxima do sentido do universo em encadeamentos vastos e cosmológicos: a vela da mesa vira o primeiro motor da teologia de Santo Tomás e a toalha, o oceano primal, sendo o prato a mônada do amor eterno. Affe! Rodrigo Lacerda narra um encontro como um encontro (Sempre Assim) e uma escolha sobre quem salvar (Santuário da Lagoinha) como uma decisão clara e individual, sem metafísica além da lei natural e do instinto de preservação de si. Há figuras de linguagem e há poesia no livro, mas as coisas não são engastadas à força como Bilac predissera para autores que deveriam torcer, altear e limar cada vocábulo. Rodrigo, felizmente, não é Bilac. Seu estilo e uso de frases está em um ponto entre Machado de Assis e Rubem Fonseca, com nuanças de Camus. Há 22 anos, quando li O Mistério do Leão Rampante, pensei: “Está nascendo um autor”. Ao terminar Reserva Natural sorrio sozinho com a percepção de um escritor já maduro, despojado de salamaleques artificiais, inteligente e com capacidade de envolver o leitor e fazê-lo pensar. Reserva Natural aumenta a felicidade de quem considera textos uma escada para o empíreo. Boa semana para todos os leitores. 

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