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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião | Ser o ‘pior’ entre as pessoas que o cercam pode ser bom para buscar um padrão de excelência

Se eu tivesse que dizer às pessoas sobre o grupo mais positivo, seria aquele em que você fosse o pior corpo, o menor conhecimento, a renda mais baixa, o mais deselegante

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Existe uma armadilha na vida: nosso entorno. As pessoas da família, amigos, colegas de trabalho: todos estabelecem padrões de qualidade. Andando com eles, tendemos a incorporar as réguas médias do grupo. Exemplo: se ninguém fala inglês na minha casa, meu domínio fraco da língua de Shakespeare será o melhor sob aquele teto. Eu receberei elogios, por ter conseguido entender um título de filme naquele idioma e serei apontado como “o bilíngue da família”. Se meus amigos concluíram apenas o ensino médio, mas eu estou cursando uma graduação a distância (EAD), minha titulação será uma colina poderosa em uma planície. Se meu grupo possui renda mensal média de cinco mil reais por mês, esse “sarrafo” medirá o sucesso como quinze mil reais. Qual é o problema?

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O primeiro diz respeito a algo que já tratei aqui e é conhecido como efeito Dunning-Kruger. Uma pessoa com baixa habilidade tende a considerar superior o que excede seu horizonte. Um entorno medíocre pode reforçar o efeito descrito. Sabendo quase nada, porém cercado de pessoas com ainda menos conhecimento, vou superestimar meu desempenho em algum campo.

O segundo efeito ruim de um meio de baixo desempenho é que ele me acomoda. Se eu consigo ganhar 20% a mais do que a média dos meus amigos de futebol, se meu carro é um pouco mais novo do que o deles, se meu apartamento tem um quarto a mais do que o dos meus irmãos, vou declarar isso como um sucesso. Bem, é uma conquista, especialmente se derivada de trabalho duro. O problema é que, talvez, eu poderia fazer muito mais do que isso e acabo tomando como modelo algo fraco. Veja bem: nunca se mede o êxito por metros quadrados do imóvel. O que estou desenvolvendo aqui é uma crença limitante derivada do entorno.

Se você consegue ler textos simples em inglês e estabelece uma comunicação básica com um cidadão anglófono, parabéns! É uma vitória! Se seu grupo de amigos traduz autores complexos, como James Joyce, e mantém debates de alto nível em língua estrangeira, isso pode desafiá-lo a um padrão maior de excelência. Ao ver que você está em uma parte mediana da pirâmide, haverá mais chance de continuar investindo em formação.

Somos animais gregários. Fazer parte de um grupo nos salva desde o Paleolítico. Ser excluído, nas savanas da África, implicava morrer. Queremos grupos de apoio em casa, na rua e no trabalho. Quem consegue evitar a companhia dos outros humanos será, para Aristóteles, ou uma fera ou um deus. Aceito que sou um animal político e, como tal, vivo em sociedade. Recomendo aqui que você busque deliberadamente um grupo com padrões exigentes.

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Se eu tivesse que dizer às pessoas sobre o grupo mais positivo, seria aquele em que você fosse o pior corpo, o menor conhecimento, a renda mais baixa, o mais deselegante. Se você conseguir negociar com seu narciso essa posição, sua biografia ganhará um desafio importante. Pessoas com o sarrafo lá em cima vão estabelecer o quanto ainda deve ser feito para se atingirem certos patamares.

Ambição é um tema delicado. Ter metas altas não é sinônimo de felicidade; desempenho forte garante mais burnout do que alegria. Eu me refiro à chance de autoaperfeiçoamento, ao caráter perfectível de todos nós, ao desafio de vencer a si mesmo (e não aos outros) ao expandir os horizontes. Para isso, uma pergunta deve ser respondida com clareza: dinheiro é um fator que alimenta minha tranquilidade? Se sim, quanto? Quero o suficiente para viver bem ou muito para outras metas? Respondendo a isso, eu posso me aproximar, por exemplo, de pessoas que investem ou que sabem fazer aplicações estratégicas. Meu corpo é funcional? Ele atende ao que preciso durante o dia? Gostaria, além da funcionalidade, de uma estética melhor? Respondendo a isso, eu me aproximo de pessoas que decidiram explorar mais limites na sua própria consciência corporal. Domino as línguas que desejo, começando pela portuguesa? Quero melhorar? Ao lado de pessoas fracas na expressão linguística, eu me sentirei acomodado. Isso vale para todos os campos. É um princípio que posso adaptar do grande Isaac Newton: quanto maior a massa, maior a atração, mas... a força depende da proximidade. O que estiver perto de mim, adaptando o físico inglês, vai me atrair mais.

Fazer parte de um grupo nos salva desde o Paleolítico. Queremos apoio em casa, na rua, em tudo. Foto de pôr do Sol na cidade de Campos do Jordão em 2 de outubro de 2024 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Sua avó perguntava e ensinava sobre as “más companhias”. Pouco se falava sobre as boas. “Dize-me com quem andas e te direi quem és” é um adágio parcialmente verdadeiro. Não sou uma esponja automática, mas, sem dúvidas, meu grupo pode ser um estímulo ou um obstáculo. Você sabe que os “nerds” ficam juntos na sala e no pátio da escola. Aquele grupo se autoalimenta com exemplos e auxílios.

É gostoso ser o melhor em algum lugar, e o conforto disso costuma tecer um aconchegante ninho de acomodação. Não se compare com terceiros. Crie seu sarrafo para chegar ao que você indica como adequado. Se quiser crescer (e isso for importante), saia com gente que o atraia para novos desafios. Crie esperança, que é o sentimento de um futuro melhor.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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