EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião | Toda Maria só existe porque Marta está servindo. Toda Marta, para crescer, tem de pensar como Maria

Respeitar o diretor e desrespeitar a faxineira é puro oportunismo cínico. Há hierarquias variadas, todavia nunca percamos o horizonte de que todos os seres humanos ao nosso redor são, por definição, seres humanos

PUBLICIDADE

Foto do author Leandro Karnal
Atualização:

Uma limpa, cozinha e serve. A outra observa e aprende. A fisicamente ativa tornou-se padroeira de todas as donas de casa e daqueles que hospedam pessoas nos hotéis. A irmã atenta à palavra é o modelo da vida contemplativa. No Evangelho, Jesus louva Maria, a que fica escutando o que o Mestre fala. Diz que a ouvinte escolheu a parte que não será tirada dela. Enquanto isso, Marta se inquieta com os afazeres.

PUBLICIDADE

Segundo uma tradição, a atarefada fugiu para o sul da França. Instalada em Tarascon, venceu um dragão. Os santos que matam dragões (sauróctonos tais quais Jorge ou Marcelo de Paris) simbolizam a luta contra o paganismo e o demônio. Continuou ativa.

Marta era uma trabalhadora; Maria uma mística. A família de Betânia se completou com o famoso Lázaro. Viraram um refúgio para Jesus. Ali tivemos três exemplos complementares de comunidade religiosa: a fé que age, a que contempla e aquela que ressuscita.

Fui a um casamento muito elegante na Fundação Maria Luísa e Oscar Americano em fevereiro deste ano. A festa foi perfeita, das mesas ao cardápio. Havia um batalhão de “Martas” ali. Rondando com bandejas, auxiliando com travessas, recolhendo coisas: muitas pessoas silenciosas e ágeis cuidavam do ambiente, para que tudo ficasse agradável aos convidados. São muros de arrimo do que ocorre na nossa vida. Em cada sala que adentro e, ali, noto limpeza, mesmo não percebendo a figura de quem assim deixou, penso no imenso silêncio de Marta.

Marta, a tarefeira, e Maria, a mística, em quadro de Vermeer de 1655 Foto: Jan Vermeer/Reprodução

O curioso do trabalho braçal é que ele, quando perfeitamente eficaz, fica invisível. Notamos, de imediato, uma sala muito suja. No entanto, raramente nos damos conta do momento em que ela está sem pó. São “fantasmas laborais”, que agem calados. Chegam antes, circulam invisíveis, retiram-se sem ruído. Se funcionarem 100%, não serão lembrados. Se houver uma falha, serão culpados.

Publicidade

Eu gosto muito da expressão que usamos na classe média e alta do Brasil. A comida é servida, a casa está limpa, tudo brilha, mas a pessoa que recebe, elogiada, diz que tem boas “auxiliares”. No rigor da expressão, a gentil senhora estaria no chão, encerando. Ao lado dela, uma funcionária ajudaria com panos novos o afã da proprietária. Isso seria uma “auxiliar”. O grosso do trabalho corre por minha conta; outras pessoas a quem eu pago me “auxiliam”. Sabemos que não é assim. Para que Maria escute, feliz, Marta deve trabalhar muito e, amiúde, sozinha.

Fui educado para considerar digno todo trabalho honesto. Certa vez, fui dar uma aula particular em um prédio de luxo. Na entrada, expliquei o que eu iria fazer. O porteiro pediu que eu subisse pelo elevador de serviço. Segui por ele. A dona da casa ficou horrorizada e ligou, com insultos, para a portaria. Achei curioso: eu era um trabalhador que iria prestar um serviço pago; a entrada não “ofenderia” minha honra. É uma herança ruim da tradição escravocrata: o trabalho (especialmente o físico) é algo estranho, que deve ser ocultado.

Temos hierarquias sociais e de poder. Meu texto não as ataca. Fui contratado por muitas instituições de ensino. Eu era um empregado e cumpria as determinações de superiores. Teria recusado se alguma ofendesse aquilo em que eu acredito. Também, eu recusaria uma ordem para algo ilícito. Assim não ocorrendo, convivo bem com ambientes de chefes e de ordens. Nunca me esqueço de uma proprietária de escola que ouviu uma professora indicar como iria desenvolver uma filosofia pedagógica para o lugar onde trabalhávamos. A dona ouviu e disse com atenção e calma: “Excelente! Compre uma escola e faça do seu jeito”. Parecia o conselho de Assis Chateaubriand quando um jornalista indicava mudanças no rumo das empresas do célebre paraibano.

Aceito hierarquias. Não sou ressentido com o poder. Exijo sempre o respeito ao trabalho. Há cargos e poderes. A dignidade pertence, por igual, à faxineira e à diretora. Não precisamos amar todas as pessoas no ambiente laboral: basta respeitá-las.

Uma senhora de estirpe elevada me contou que estimulava os filhos a não terem patrão. Acho a vocação do empreendedorismo rara e muito específica. Penso ser útil estimular todo mundo a crescer, a estudar, a buscar desafios. Porém, se você vai abrir seu próprio negócio, deve saber que negociar com fornecedores e atender clientes obriga-o a um jogo de habilidades muito maior do que ter apenas um chefe. Empreenda, se desejar. Descobrirá que o mundo tem um milhão de pequenos poderes, quase todos problemáticos. Candidatando-se a um concurso público ou buscando um arriscado negócio seu, busque o melhor de si, ao estilo de uma Marta, diligente, valorizando sempre todos os que trabalham perto de você. Respeitar o diretor e desrespeitar a faxineira, já escrevi, é puro oportunismo cínico. Há hierarquias variadas, todavia nunca percamos o horizonte de que todos os seres humanos ao nosso redor são, por definição, seres humanos. Parece tautologia, mas é puro humanismo sofisticado.

Publicidade

Por fim: Marta é uma “tarefeira”. Ela precisa aprender com a irmã a parar e pensar. Toda Maria só existe porque Marta está servindo. Toda Marta, para crescer, precisa pensar como Maria. Precisamos aprender com uma e outra. Tenho esperança de que possamos servir ao Mestre e... ouvi-lo.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.